Estreou em Bissau, o filme de Sofia da Palma Rodrigues, “Por ti, Portugal, eu juro”, o qual se debruça sobre o caso dos Comandos africanos, soldados que combateram nas fileiras do exército português durante a guerra do Ultramar. A Sofia e a sua equipa estão de parabéns por terem ousado violar o tabu e abordar esse tema fracturante, de ambos os lados da antiga trincheira. Entretanto, meio século passou sobre os acontecimentos, os arquivos militares foram desclassificados… Desde 2017, a Sofia recolheu testemunhos que se perderiam para sempre de outra forma: entre os sete protagonistas escolhidos para apresentar (o projecto tem bastante mais material recolhido), apenas três continuam em vida. Pena é que tenha sido o Centro Cultural francês a acolher a iniciativa, indício conclusivo da atitude comprometida do Estado português nesta questão.
A verdade liberta. Se o making of, só por si, já evidencia o efeito catárquico a título individual (um dos protagonistas assume ser a primeira vez que aceita falar, longo silêncio, lágrimas), o impacto colectivo, memorando a tragédia e o sofrimento destes homens para a história, é já um resultado maior. Um pouco como aconteceu com Joaquim Furtado, cuja série sobre a guerra colonial enterrou definitivamente esse manto de silêncio com que envergonhadamente se acolheram aqueles que, do lado português, foram obrigados a combater numa guerra que muitos consideravam injusta. O blog Tabanca Grande, no qual desde 2005 se recolhem testemunhos de ex-combatentes, é outro exemplo.
A Sofia conseguiu fazer-se ouvidos e penetrar a fundo no trauma, nas várias estratégias de sobrevivência face à perseguição implacável de que foram vítimas, à dor de ver os camaradas caírem uns após os outros, ao sentimento de abandono por parte de Portugal. Sobressai uma narrativa de compulsividade no recrutamento, a qual se equipara à obrigatoriedade do serviço militar para os jovens portugueses. De ambos os lados, irmanados por não terem ido à guerra por sua vontade, mas por força das circunstâncias.
A Sofia admitiu, todavia, uma excepção. Um tabu remanescente, perante a violação assumida? A polémica que se seguiu ao falecimento de Marcelino da Mata, durante o COVID, veio demonstrar que, se o tabu da guerra colonial está definitivamente enterrado na sociedade portuguesa, o tema continua fracturante. Podem compreender-se as razões da Sofia, para não perder o foco na humanidade da tragédia e evitar que esse pendão canibalizasse o fio à meada. Contudo, e por isso mesmo, esta atitude pode ser sintomática de uma negação primordial, ou seja, da dignidade do juramento “ideológico” de Marcelino da Mata por Portugal. Há precedentes históricos, como Honório Barreto, para além de devidamente representado no seu filme.
A Sofia, que trabalha no projecto Divergente, discrimina entre jornalista e activista, considerando-se na primeira categoria. Obviamente que este é sempre um equilíbrio difícil; acrescente-se que nem sempre foi assim, lá vai o tempo em que ser jornalista de intervenção estava na moda. A esse título, a Sofia deverá refrear afirmações como “a africanização da guerra foi criminosa”. No contexto em que foi proferida, e em especial em relação ao General Spínola, pode mesmo induzir em erro: basta consultar o quadro de efectivos não metropolitanos para constatar que o número de recrutados localmente não subiu significativamente com a chegada de Spínola em 1968, nunca ultrapassando um quarto dos efectivos totais. A africanização da guerra já existia e nunca atingiu a dimensão que um espectador desinformado pode entender por essa afirmação.
O convidado para se sentar ao lado da Sofia durante o debate que se seguiu à sessão de cinema, utilizou igualmente a palavra criminoso, referindo-se ao General Spínola, um militar honrado e respeitado. Esforçou-se por tentar branquear o papel do PAIGC no massacre destes homens, lembrando que os pós-guerra trazem sempre uma caça às bruxas, fornecendo para exemplo as mulheres francesas colaboracionistas durante a ocupação nazi, a quem foi rapado o cabelo, com a “libertação”. A negação parece um péssimo sintoma, atendendo aos objectivos da iniciativa. Portugal reconheceu a independência da Guiné há cinquenta anos: a guerra deveria ter acabado, mas parece haver quem continue a alimentar ódios não só básicos, como verdadeiramente criminosos, nem que por omissão, tentando justificar o injustificável: não se arrependem e voltariam a fazer o mesmo? Obsoleto! Parece que os complexos que assassinaram Cabral continuam vivos!
Guerra é guerra. Se houve um teatro onde a guerra foi mais “humana”, foi na Guiné, com o General Spínola: por exemplo, acaba com a PIDE em Bissau, chegou a querer prender o seu Director, declarando que preferia não ter informações a que estas fossem extraídas por métodos desumanos. Criminosos foram aqueles que mataram Cabral, os mesmos que, já em tempo de paz, enganaram os comandos, primeiro para os desarmar, para depois mais facilmente os martirizar.
Obrigado, Sofia, foi comovente constatar como conseguiu devolver a identidade a estes homens. Talvez não seja o reconhecimento que pretendiam, mas é algo, já. E muito importante.