segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Sistema monetário

Passei há alguns dias pelo Arquivo Histórico da Marinha. Fiquei impressionado ao descobrir a dimensão desta componente da Biblioteca da Marinha, instalada no amplo edifício da Cordoaria Nacional (com espaço para esticar cordas com 400m - ou correr um estádio sempre a direito). Uma enorme extensão de prateleiras, com os riquíssimos arquivos da já velhinha Marinha portuguesa, onde aparentemente tudo se encontra bem organizado e documentado, desde a construção das naus, ao abastecimento, diários náuticos, enfim, um «mar» sem fim de informações, de enlouquecer um amante de história.

Por curiosidade dei uma breve vista de olhos pelos tempos de Honório Barreto, o guineense que dava lições de patriotismo luso aos portugueses vindo a ser Governador da Província da Guiné durante muitos anos, e Comendador da Ordem de Cristo. A sua vida dava um conto! O BNU, decerto lembrado disso, emitiu a respectiva nota de mil escudos (ainda com cobertura estipulada em ouro), ou um milhão de reis.


Um pouco ao acaso, encontrei um interessante relatório do ano de 1844, inserido num Almanaque para uso da Marinha, do qual transcrevo uma parte relativa ao «sistema monetário». Ainda há pouco tempo falava aqui neste blog de «escassez monetária»: já há quase dois séculos relatavam estar perante uma situação muito parecida (já aqui relatei outro caso, no tempo de Dom João II, há mais de 500 anos)...

«Não há moeda especial nesta província: a que gira como tal com um tipo fixo, e por isso se reputa moeda provincial, é a moeda antiga de prata brasileira, a qual corre na Praça de Bissau, pelo seu valor nominal (múltiplos de 320 réis), e nesta moeda, que ali se chama fraca, se cobram as rendas e se pagam os encargos. Só ao Governador e Secretário Geral e Juiz de Direito, e ao pessoal do Exército e Armada, se paga em moeda forte, que é a moeda de ouro e prata de Portugal, e na falta desta recebem a moeda fraca com o agio estipulado de quatro por cento. Gira também pelas mãos dos comerciantes e do povo (que não coloca nenhuma dificuldade em aceitá-la) grande variedade de moedas de prata das diversas nações que frequentam nossas Praças, mas sem câmbio determinado, com valor variável dependente de convenções: o duro espanhol e o dólar inglês são as mais aceites e quase sempre recebidas pelo valor de mil réis; o dólar americano, o peso mexicano, o rixdale alemão, o escudo francês ou italiano, correm as mais das vezes pelo valor de oitocentos réis : na mesma proporção as fracções. A moeda de cobre e bronze de Portugal (única que ali gira e sempre em quantidade muito reduzida para as necessidades mercantis), serve de troco alternativamente à moeda forte e à moeda fraca, sem diferença.

Para o interior do sertão não há qualquer circulação de numerário (o que dificulta, e não pouco, as transacções): apenas os negociantes de grosso trato efectuam algumas vendas a estrangeiros a troco de moedas de prata e ouro, que aforram ou mandam para fora, porque as gentes as não estimam e o povo das praças não está afeito a elas: tudo ali é resgate e troca; o próprio Governo paga aos seus empregados em géneros (cuja maior parte nem sequer são de produção nacional). Esta prática, além de tolher a circulação do numerário, desmoraliza os empregados, obrigando-os a serem mercadores, e ainda mais os soldados, a quem se dão em pagamento grandes porções de aguardente, com a qual se embriagam.» 

Um pouco mais à frente, é descrita uma pitoresca forma de negociar: «a olho». As companhias comerciais eram aliás e curiosamente conhecidas, na gíria, como de «olho vivo»:

«Nas alfândegas são adoptados os pesos e medidas portugueses, mas no trato com o povo, as medidas são todas de convenção no momento do ajuste, servindo-se para medir o arroz e grãos de côfos de diversas grandezas, tudo o mais vendendo a olho.»

Transcrevo um último excerto, no qual surge uma reivindicação ainda hoje actual. O descasque local do arroz!

«Dos géneros que se podem exportar da Guiné, já eu falei extensamente no capítulo anterior: são eles em resumo - os couros de boi, búfalo e anta, peles de onça, gazela e fritambá, cera, óleo de palma, arroz de diversas qualidades (cuja receita aumentará muito em valor, se se estabelecerem nas nossas Praças moinhos para o descascar), tartaruga, algum ouro do Geba, plumas de Gemé, madeiras para a construção naval, marcenaria e de tinta, incenso, goma arábica, algum café (bravo, mas de sabor delicado) e algum óleo de cola. Os géneros que mais se enviam das nossas Praças para o sertão, pelos rios, são o sal e a cola».


A Marinha homenageou Honório Barreto dando o seu nome a uma Corveta, aqui com a sua guarnição em formatura.


As estatísticas do Comércio externo da Província (aparentemente largamente excedentária) são fortemente criticadas no mesmo relatório (incluindo a metodologia de extrapolação de um trimestre para o ano inteiro), afirmando o autor que representam, na sua estimativa e apesar da abolição da escravatura, apenas cerca de um sexto daquilo que havia sido realmente transaccionado no território. A parte de contrabando não engana, quanto ao poder real da potência «colonial», apesar das esforçadas diligências de Honório Barreto.

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