Não o tomem por anódino. Recomenda-se o perfil no FaceBook, do Eminentíssimo Professor Galopim de Carvalho, para intermináveis horas de agradável leitura gratuita, para quem gosta de aprender, só porque sim, por vezes em inspirados e deliciosos episódios de transdisciplinaridade, entre história, geologia ou outras ciências, mas, acima de tudo, um pedagogo à escala dos seus animais de estimação. Leia-se o magnífico artigo publicado há umas horas, que começa assim:
«Perguntei, há dias, a um grupo de adolescentes, a frequentarem o secundário, porque é que a lata de Coca Cola, saída do frigorifico para a mesa, começa a ficar cheia de bolhinhas de água, com se mostra na imagem. A maioria ficou calada. Os dois ou três que procuraram responder, mostraram que foram amestrados para responderem às perguntas que lhes são feitas no exame final, mas estão a léguas de toda a beleza que a Física tem para nos mostrar. E quem diz a Física, diz quaisquer outras disciplinas.»
Aqui em Bissau, nada-se em humidade do ar. Os viajantes aéreos mais apressados são confrontados, mal a equipagem acciona o mecanismo de abertura da porta, com o efeito de brusca descompressão (não cai directo, quase um suspiro) para acto contínuo, levarem com o violento impacto do bafo, um autêntico murro de água (julgo que as tripulações veteranas têm gozo nisso). Bom, mas estou a afastar-me do assunto, foi apenas para contextualizar as coordenadas geográficas. Aqui, o efeito que o Eminentíssimo Professor descreve é bem mais rápido e intenso do que em Portugal. Portanto, mais propenso a despertar a curiosidade. Aqui não é preciso colocar em slow motion para ver com os próprios olhos a "lenta" formação de grossas gotas. Até porque, muitas vezes, as latas chegam a "fumegar" água do excesso de refrigeração e quase congelação. As crianças são gente atenta e curiosa (e também gulosa). Aconteceu que, por necessidade de hidratação e decerto num devaneio anti-alcoólico, pedi uma Fanta. A lata laranja atraiu o olhar de dois jovens (10 ou 11 anos, não sei bem) que andavam por ali, muito educadamente, pediram licença para sentar. Disse imediatamente que sim, mas desconfiado que me iriam pedir um sumo (e estava disposto a dizer-lhes imediatamente que não)... não sabia se me tinham lido o pensamento, o facto é que se sentaram só e pareciam estar felizes por partilhar o momento de beber a lata, mesmo sem beber nada. Não me decidia a abrir a lata, que ali estava. Houve um momento de indecisão, mas os remorsos de uma possível suspeição infundada mas também a pensar que já estava "agarrado", pedi mais um copo (para poupar o empregado, que já tinha trazido um). Dando a entender que ia dividir o sumo, coloquei um copo à frente de cada um, enquanto perguntava se alguém queria beber pela lata (no pressuposto errado que ficaria para mim), mas nesse momento, um deles, que continuava concentrado na lata, disse que preferia a lata, mas quando vou para lhe pegar para a abrir, vira-se para o amigo e aponta para as pérolas de água em formação (passado pouco tempo começariam a "chover" pela superfície vertical da lata)... eventualmente iniciado havia pouco tempo, estava a mostrar a maravilha daquela animação ao colega (claramente mais desatento, ou chegado do interior onde o frio ainda não chegou); tinha razão, o mestre, pois o discípulo esbugalhou os olhos e ficou maravilhado. O amigo com toda a espontaneidade, vira-se para mim e pergunta "De onde vem a água"? Claro que é nestes momentos que sabe bem ser pedagogo. Hoje, que recupero a história por associação à do professor, começo mesmo a pensar (conhecendo bem a esperteza congénita dos guineenses) que não foi casual, mas sim premeditado: o "artista" estava mais interessado na explicação do que no seu trinhão de sumo.
Em crioulo, expliquei de todas as formas que me lembrei, até perceber que tinham entendido a "santíssima" trindade Gelo+Água+Vapor de água e entendessem que era a temperatura que determinava a passagem de estado entre elas, entre 0 para o gelo (com algumas temperaturas pelo meio, como a corporal, para comparação) e 100º, iagu firbi quando se lhe incorpora calor. O vapor de água foi claramente o mais difícil, pois gelo e água conhecem muito bem, sabem que o gelo derrete e se torna em água, e que ao contrário, colocando água na arca esta torna-se em gelo passado algum tempo (ainda ensaiei uma explicação sobre o funcionamento dos frigoríficos e que estes não "fazem" frio como estavam a dizer, dito mais cientificamente extraem calor, mas rapidamente deram a entender que me estava a espalhar e a afastar do essencial). Voltando ao vapor, como haveria de definir vapor de água para que percebessem? Fui pelos cenários, perguntei se sabiam o que acontecia, quando se punha água a ferver ao lume e se esquecia. Responderam ao desafio, com multitude de pormenores, um até descreveu a dificuldade que a mãe tinha tido em raspar o carvão para lavar depois. Então para onde foi a água? perguntei. Passou-se um momento, o mais d(esperto) observou que, "se pusermos a tampa para impedir que ela fuja, não dá, porque ela faz cada vez mais força". Um cientista! Um pouco mais, reinventaria a máquina a vapor ou a panela a pressão. Escaldado com o exemplo do frigorífico, desisti de explorar o assunto. A nuvem do cozinhado, a condensação na parte superior da tampa, acabaram por perceber, garantido por um pequeno exame. A curiosidade, a capacidade de se maravilhar, fazem parte desse querer aprender. Por si próprio (são a nata da elite, segundo Fernando Pessoa), ou pelos outros; havendo sempre (essa restrição, mesmo com fraca variabilidade histórica, depende obviamente da organização política) uma maioria que não aprende, nem sozinhos nem ensinados (a que corresponde o povo, nesta tipologia pessoal pessoana anti-democrática). Estas são as verdadeiras elites, mesmo se cada vez mais escassas e arredadas do poder, por ameaçarem a mediocridade reinante. Já Fernando Pessoa, em pleno conhecimento de causa, o dizia. Em terra de cegos, quem tem um olho é rei, e desgraça de quem tem dois: ou fura um, para disfarçar, ou emigra.
O professor induziu a pergunta e não só colheu uma amostra estatisticamente representativa do falhanço da escola, como ainda detectou os subprodutos, todo o fingimento da mediocridade no poder, não só de falta de formação de elites, mas mesmo de deformação de pseudo-elites. O que temos? Pior que a massa de ignorantes (dos quais poucos, neste ambiente, poderão aspirar à humildade socrática que favorece a utilização da pergunta "Porquê"), os macacos ensinados a armar-se em espertos (decerto filhos de peixe), preparados para serem os políticos "muito" democráticos do futuro, conjugam ignorância com arrogância. Onde estão as elites de amanhã? É preciso repensar a escola obsoleta que temos, fazer exames sérios e exigentes, despedir a granel. A escolaridade obrigatória tornou-se um sequestro da juventude pelo estado pseudo-democrata-socializante, que para nada serve, senão como pernicioso obstáculo à mobilidade social e à manutenção de pseudo-elites medíocres e corruptas. Há que devolver às famílias as crianças! Com esta escola mais vale transferir a angústia: que vão aprender sózinhas e depois que se sujeitem a exame.
Só pela existência de uns poucos, que à sua grandiosa escala, mantiveram estoicamente o esboço de formação de elites, tais como o Eminente professor, é que o país ainda não desapareceu. Pena é que as poucas vozes nesse deserto não tenham força suficiente para contrariar o triste estado a que nos conduziu a lógica da defesa da mediania e dos coitadinhos: como reconhece o ladino professor e magnífico pedagogo, chumbaram todos. Que bosta de escola, que se esqueceu que é feita para fazer pensar, para compreender o mundo, para fazer a sociedade beneficiar do contributo dos melhores e não ficar exposta aos piores! Comungo com o meu irmão esta nossa pedagogia da lata orlada de pérolas de água de outras latitudes.
Acrescentando que é uma das razões que me faz sentir livre na Guiné-Bissau e muito menos stressado, que nesse país de velhos precocemente senis (aos 40, já só podem invejar a presença de espírito dos dinos e tentar varrer a sua insustentável leveza para debaixo do tapete da sala, só que esta levanta e contamina toda a casa), numa involução educacional e regressão geracional, forjada desde a escola, contrastando decididamente, especialmente em Portugal, com as conquistas do século XX. Fala um filho de professores primários, que conheceu pessoalmente Paulo Freire na Guiné-Bissau, em criança. Com admiração, como sempre, muito obrigado, Professor, por existir!