sábado, 16 de maio de 2020

Falsa questão

O progresso acontece por arrancadas, momentos em que uma vontade estruturante se sobrepõe à involutiva entropia reinante, induzindo a consequente e desejada mudança. Tem de haver uma ignição, uma intenção, para colocar em marcha o processo...


A questão da iniciativa da revisão ou reconfiguração constitucional parece por isso uma falsa questão, como assinalou, muito acertada e oportunamente, o homem da comunicação do PRS. Camarão que dorme, a onda leva. Abre a pestana, dorminhoco!

Como garante maior da eficácia e eficiência do espírito da Constituição moribunda, é ao Presidente da República a quem compete responsabilizar-se pela reforma de que tanto se fala há tantos anos, mas em relação à qual nada se avançou ainda.

O apito para o pontapé de saída tem de ser dado. Os anarquistas diriam que qualquer um pode apitar para começar a partida. Seria bom que assim fosse, e houvesse gente que também começasse a correr por simpatia, apesar dos riscos de grande confusão.

Contudo, aquilo a que temos assistido, nesse domínio, é a uma grande falta de debate. Ninguém discute em que sentido se deve caminhar, que nova constituição se deseja. Se ninguém discute, é normal que ninguém se entenda. Fica bloqueado o caminho.

Ora é essa a anquilosada política da mediocridade do PAIGC pós assassinato de Cabral. O pior é que o diabo que os levou a matarem-no, precisamente quando conseguira aquilo de que todos inicialmente duvidavam (o programa mínimo), continua bem vivo.

Alguém tem de fazer alguma coisa. Não pode chocar e muito menos parecer mal, que seja a pessoa mais indicada para o operar que o faça. Não parece igualmente que novo comissionamento implique qualquer desautorização em relação a precedentes.

É que a anterior Comissão, bem legalizada e encarregue da revisão constitucional, foi tão eventual que não se lhe conhecem quaisquer trabalhos ou resultados. Mas até pode, agora que acordou para a vida, entrar em concorrência para a oferta do produto.

Em relação à recém-empossada mas já desfalcada Comissão  (pelo preguiçoso bastonário dos advogados, não se sabendo se há mais elementos refractários ou demissionários), resta saber algumas coisas não despiciendas sobre o seu modo operativo.

Há alguma indicação sobre qual o caminho a seguir? Em que direcção caminhar, para além dos lugares comuns em torno da mitigação do presidencialismo? O que se pretende? Uns simples remendos num trapo velho, que já foi espezinhado por muitos?

Carlos Vamaïn parece uma boa opção para a composição da Comissão, uma vez que se lhe conhecem ideias proactivas sobre o assunto. Sempre é melhor que nada. Já quanto a encabeçar a agenda, parece mais complicado, pois parece ter mais olhos que barriga.

Mas não se trata apenas da falta de confiança que possamos sentir em relação ao espírito de concretização de Carlos Vamaïn. Trata-se do alfaiate e da encomenda em si. O fato que lhe foi comissionado é para importar e amanhar, ou para ser feito por medida?

Idealmente, devemos encarar todas as iniciativas reflexivas como saudável exercício intelectual. Contudo, nas coisas importantes e decisivas, há que introduzir uma liderança estratégica e decisória. É impossível fazer milagres: sem ovos não se fazem omeletes.

Para além dos/as apontados/as para a Comissão (e da questão da sua liderança), há ausências de peso que não devem ser escamoteadas. Tratam-se de vocações que seria pouco inteligente desperdiçar, no contexto geracional da digna tarefa a encarnar.

Temos, em primeiro lugar, Emílio KK, o qual, apesar do seu dúbio posicionamento político, na cobertura às atrocidades cometidas pelo cunhado contra o povo guineense, não deve ser excluído do momento, se se mostrar disposto a contribuir de boa fé.

Logo em seguida, temos Julião SS, que ainda há pouco tempo publicou um breve mas inteligente artigo de opinião, mostrando que está vivo e atento à evolução da conjuntura política nacional, apesar de continuar a carreira universitária em Coimbra.

Temos ainda Adilson DD, brilhante doutorando e paladino da Guiné em importantes negociações internacionais, cuja aguda perspicácia e penetrante intuição, reforçadas por uma descrição inabalável, recomendam-no obviamente para a tarefa a desempenhar.

Qualquer nação que pudesse contar com qualquer um destes três já ficaria bem servida, mas a Guiné pode contar com mais cabeças ainda, que não deve desprezar. E sem dúvida que o senso comum e faro político de Didinho são igualmente indispensáveis.

Finalmente, porque as Forças Armadas devem ter uma palavra a dizer neste contexto, e a antiga letra já obsoleta da futura ex-Constituição prescreve que é seu dever de honra contribuir para a reconstrução do país, também Daba NW deveria ser convocado.

Parece igualmente importante que a Comissão, para poder cumprir satisfatoriamente com a incumbência cometida, encare o processo como participativo, advogando uma discussão pública autenticamente esclarecedora para todos e para todas.

Os candidatos a legisladores não devem escamotear ainda que, mesmo que consigam apresentar uma proposta, esta terá de ser votada por pelo menos dois terços dos deputados, ou seja 68 (curiosamente a soma aritmética do PAIGC e do PRS na ANP).

Em conclusão, a questão da iniciativa é uma falsa questão e apenas serve para tentar bloquear o país, adiando-o para as calendas gregas. Sendo-se verdadeiramente patriota, há que encarar o desafio como uma oportunidade de ouro para a mudança.

Não se compreende, ainda, por que razão o Presidente não tira da gaveta o mandato que tacitamente se presume do pedido assinado pelos deputados dos dois partidos (PRS e MADEM), quando lhe escreveram a pedir para re-organizar a Comissão.

É que, se para aprovar a proposta são constitucionalmente necessários dois terços dos deputados, para apresentar a proposta, é necessário apenas um terço (34 deputados). E para começar a discussão, basta um deputado que apresente uma proposta qualquer.

Em que ficamos?

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