As autoridades monetárias, desesperadas por absorver massa circulante e conter as pressões inflaccionistas em troca dos montes de papel que possuem em armazém (a colocação dos títulos do tesouro tem sido tendencialmente nula, como este blog vem demonstrando pela análise dos relatórios semanais do Banco Nacional de Angola), lançaram um Fórum nacional de Investimento em Dívida pública «com o objectivo de dinimizar o mercado secundário», publicitado pela Agência Noticiosa oficial. Vai ser difícil minimizar os estragos e dinamizar a venda de títulos do tesouro: só um regime onde a arrogância impera, pode alimentar a pretensão de fazer de burros os seus cidadãos. O marketing monetário utilizado poderia ser acusado de enganoso (para evitar o termo «burla»), se não fosse tão estúpido.
Oferecendo uma taxa de juro nominal inferior a 10% ao ano, tal investimento pressupunha confiança no Governo, que a taxa de inflacção real mensal se mantivesse bem abaixo de 1% e que o câmbio ao dólar não resvalasse. Com um cenário tão animador, não se compreende a falta de adesão a instrumentos financeiros tão competitivos no mercado internacional (ver folheto) conhecendo o grande número de capitalistas angolanos, fruto da consistente política de acumulação primitiva promovida por José Eduardo dos Santos. É decerto uma conspiração do mercado, dado que a procura não excede 1% «dos Títulos de dívida pública já emitidos» (mesmo essa ínfima parte, não foi de livre vontade, mas enfim...).
Uma vez que o regime se recusa a indexar o kwanza ao petróleo, talvez devesse indexar os salários à gasolina.
Brevemente, em vez de ordenado, receberão TTs de «alta liquidez». Um milagre do capitalismo de Estado...
Ou a institucionalização da palhaçada?
domingo, 3 de maio de 2015
Marketing financeiro para idiotas
sábado, 2 de maio de 2015
Mudança geracional em Angola
Palavras finais de Mfuka Muzemba em entrevista a'O País: «Entendo que o meu esforço de agora é desencadearmos um movimento no âmbito de uma plataforma de intervenção e cidadania para que os jovens consigam manter um espaço permanente de debate sobre as grandes questões do país. Para começarmos a preparar uma geração. Eu vou-lhe dizer uma coisa: a realidade do país nos próximos quatro ou cinco anos será diferente. O cidadão vai falar mais alto do que os partidos. Há uma geração que está a emergir e com bastante satisfação. E é isso que me faz acreditar que mantenho a convicção de que o país pode ter futuro com essa geração. É uma geração em que fazem parte jovens ligados a vários partidos, mas que se vai autonomizando. E é esta geração que vai provocar a mudança qualitativa que se espera.»
Alguns activistas já foram libertados
O jornalista da Rádio Despertar Daniel Portacio insiste com a Polícia para ser devolvido ao local da detenção, onde tem o carro estacionado.
Outros activistas começam a ser libertados.
Prisão de Mário Faustino
Confirma-se a prisão de Mário Faustino, mentor e porta-voz da manifestação de desmobilizados, bem como dos restantes elementos da organização.
Medo dos jacarés
Vários activistas, entre eles Nito Alves, Emiliano Catumbela, Daniel Zola, Laurinda Manuel, Rid Miguel, Raul Mandela e um jornalista da Rádio Despertar, Daniel Portacio, estão retidos pelos sinistros Serviços Secretos numa Escola das proximidades do Largo. Atendendo aos precedentes de há três anos, talvez fosse melhor cercar a escola e não deixar que transfiram ilegalmente, para destino desconhecido, uma geração que representa o futuro de Angola. Cidadãos que não cometeram qualquer crime, presos arbitrariamente quando pretendiam fazer uso de um direito constitucional, não podem ser entregues à humilhação gratuita. É, aliás, pouco pedagógica e verdadeiramente indigna, a ocupação de um campus para este fim.
No conforto da retaguarda
As declarações da igreja são lamentáveis. A igreja lava as mãos, como fez Pôncio Pilatos, quando deveria gabar-se de estar na primeira linha!
O Papa lembrou os 100 anos do
genocídio arménio, mas ainda não teve uma palavra para o genocídio
religioso angolano, mesmo debaixo das suas barbas, que pretende varrer para debaixo do tapete, encobrindo a malvadez das autoridades, prestando-se a encenar cerimoniais de legitimação com bispos de braço dado com criminosos?
Se a
Igreja não se pronunciar de forma mais clara (o adequado seria uma bula
de destituição sob pena de excomunhão, a título de precedente, use-se a minuta de Grandi non
immerito) terá que arcar com o peso de mais mortos na consciência; deveremos pois concluir que é uma igreja não reactiva, ou
seja, morta, conivente (para não dizer escrava) com o poder temporal perante as maiores aberrações e totalmente desligada das profundas e legítimas
aspirações das populações.
Recados para José Eduardo dos Santos
O boca de aluguer do regime e especialista da retórica barata, Artur Queirós, insiste na versão oficial do bode expiatório que produziram para distrair as atenções dos cidadãos, atingindo um auge de hipocrisia quando se refere a uma «tropa de choque Kalupeteca». Face às decisões já anunciadas pela UNITA e CASA-CE de remeter o caso à ONU e ao TPI, o regime prefere a negação: à beira do precipício, opta pela fuga para a frente, pela pena de um mercenário irresponsável. Fica a resposta, cheia de bom senso, do Zeca, lixado c/ este marmanjo:
Ai apareceriam logo nas TV´s de todo o Mundo? Estou espantado! E quem é que tomaria as imagens e as publicaria se o Governo nem um gato deixa entrar naquela zona para se poder ver realmente e no tempo mais curto possível os vestígios deixados no terreno, hum?
A NSA Norte-Americana a partir de satélites espiões é que não de certeza, teriam de ter o planeta inteiro a ser filmado 24/24 e 7/7 para depois se poder ir ver os "Replay´s" de tudo o que se passou, seria como então? Ou vão lá exclusivamente vocês aí do JA mais os "primos" da ANGOP, RNA e TPA, mas só DEPOIS da "limpeza" que aparentemente estará a ser feita no local pelas Forças da "Ordem" e pelos vistos pelos Militares também ? (1)
Tenha mazé VERGONHA NA CARA! Se julgam que com essa patranha monumental vão enganar alguém e de uma cajadada "colar" todos os Partidos da Oposição à UNITA, também se devem julgar os únicos espertos do planeta ou que o resto é tudo uma kambada de imbecis e inúteis que têm só de "comer e calar" sem refilar...
WRONG! Desta vez vão-se "paiar" e bem! Esperem só pelas reacções Internacionais e atrevam-se entretanto a fazerem (como já se começa a "cheirar"...) algo de mais grave e repressivo neste nível exagerado e inadmissível contra os outros Partidos e os seus Dirigentes à "boleia" das acusações evidentemente FALSAS contra a UNITA.
"A César o que é de César!"... deixe-se mazé destas TRETAS, tá???
(1) - outra VERGONHA mais: no Burundi os Militares meteram-se entre o Governo e a população revoltada a fim de evitarem o avolumar dos incidentes e passar ao governo o aviso de que não vão permitir mais repressões sangrentas; aqui não, NUNCA estão ao lado do Povo de onde vieram, é TRISTE...»
Indirecta
O Primeiro-Ministro timorense criticou ontem Angola, no discurso de encerramento da XII reunião dos ministros do Trabalho e Assuntos Sociais da CPLP.
«Os ideais de liberdade pelos quais nos batemos, não há tanto tempo
assim, e o crescimento económico que os nossos países têm procurado
impulsionar, caem no vazio se os nossos povos não sentirem melhorias nas
suas condições de vida, se não tiverem acesso aos serviços mais básicos
e se não tiverem oportunidades para se desenvolverem a si próprios.»
O regime angolano caiu no vazio. O poder desceu à rua.
sexta-feira, 1 de maio de 2015
Convocação do CNAA
O
Conselho Nacional dos Ativistas de Angola
Convoca todos antigos
combatentes, partidos políticos, militares no ativo e o povo em geral
A
participarem na manifestação que vai mudar o regime ditatorial, no dia 2
de Maio de 2015.
Concentração às 9h no Largo do primeiro de Maio com
destino ao Palácio.
A derrota da FrançAfrique
O livro, dedicado à Costa do Marfim, que será apresentado no dia 7 de Maio, da jornalista Fanny Pigeaud, assume-se como representativo de uma nova forma de encarar o jornalismo relativo às questões africanas, em França. Com uma imprensa tributária do politicamente correcto (versão oficial e manipulada), este livro, que coloca em evidência as graves responsabilidades da França nas atrocidades do regime, vai incomodar não só o regime de Ouattara, como também muito boa gente em Paris, e talvez contribuir para uma nova forma de encarar as relações com África. «Os observadores começam a abrir os olhos», termina o artigo do Le Quotidien.
Um dia antes, no dia 6, sobe à apreciação da Assembleia Nacional francesa, relatório de duzentas páginas co-redigido por Baumel e Guibal, muito crítico quanto às promíscuas relações alimentadas pelo Estado francês com muitos países africanos. insurgindo-se contra o apoio a ditaduras. O relatório começa por Paul Biya, dos Camarões, que consideram «um regime ilegítimo, que se tenta aguentar frente a múltiplas explosões graças à repressão, um forte aparelho de informações e forças especiais, nomeadamente a Guarda Presidencial». O relatório está a incomodar, o que levou o jornal dos funcionários da Assembleia Nacional a considerar o escrutínio dos deputados como inédito, na V República: «Du jamais vu!».
A esta evolução da política externa francesa, não será alheia a constatação do crescimento de sentimento anti-francês junto de muitos africanos, exposta nas crises maliana e centro-africana. Num louvável mea-culpa estratégico, o Primeiro-Ministro terá feito uma avaliação crítica da operação «dunas». O peso dos riscos apontados aqui neste blog a essa «visão» estratégica, agora descartada, ficaram claramente à vista: «essas intervenções militares sucessivas não induziram uma pacificação durável, muito menos uma paz definitiva. Esta situação não é portanto sustentável, nem em termos políticos nem militares, tanto em termos orçamentais como de imagem do país». A reacção de alguns dos incomodados foi estranhar que os media tivessem tomado conhecimento dos textos...
Confrontos em Bujumbura
O «efeito Blaise», como já lhe chamam, parece estar na origem desta súbita empatia na revolta contra a eternização das ditaduras, sentindo-se que uma onda de esperança, sob o lema da boa governança, se prepara para varrer o continente.
Acerca desse efeito, escreve-se no blog Rues d'Afrique que «A oposição, mas sobretudo a sociedade civil apercebem-se que os ventos da história mudaram : às sucessivas primaveras árabes, veio juntar-se a exemplaridade do abandono do poder por parte de Blaise Compaoré, varrido pela rua em Outubro de 2014, após trinta anos de usurpação do poder; as maquilhagens constitucionais deixaram de ser uma opção em África.»
No Burundi, crescem as manifestações contra o terceiro mandato do Presidente, havendo notícia de um polícia morto, enquanto a AFP fala de recusa do diálogo. Enquanto alguns comentadores, como por exemplo na Aljazeera, agitavam o fantasma da violência étnica ontem no seu noticiário, a resposta a essas insinuações é óbvia: «Aqui no Burundi soamos o alarme! Não se trata já de qualquer fractura étnica entre Hutus e Tutsis, mas apenas de um problema puramente político, com um poder que acusa a oposição de fazer recuar o país para a guerra, enquanto o próprio rega o fogo com gasolina.»
No mínimo curiosa, é a atitude dos Estados Unidos, que fizeram um óbvio apelo ao Presidente para que abandone o poder a bem, enquanto é tempo. Não resisto a deixar no original da Reuters: «U.S. tells Burundi's president : your country risks boiling over». Igualmente curiosa e, sobretudo, reveladora dos novos medos das ditaduras, a contra medida adoptada pelas autoridades, que consistiu em cortar o acesso móvel à internet.
Efeito dominó
A deslocação de Ouattara a Lomé, para um desesperado golpe de bastidores, foi prenhe de funestas consequências. Em Abidjan os estudantes marcham ao assalto do Palácio Presidencial, depois de bloqueadas as tentativas da polícia (ver video) para impedir a tomada de posse de Gbabo como Presidente do seu Partido, em Mama. A onda de choque rapidamente se propagou à capital...«As forças da ordem, ultrapassadas, pedem reforços. A situação está extremamente confusa e muito volátil».
O Le Monde de há uma semana dera um sinal premonitório:
«O exemplo burkinabê e a queda súbita de Campaoré fizeram o medo mudar de campo. "Viremos a página !" tornou-se na palavra de ordem das sociedades civis africanas e dos seus parceiros europeus. A França e os Estados Unidos apelaram claramente aos chefes de Estado africanos para viabilizarem a alternância. Quantos mais terão de morrer na rua para que o regime togolês aceite eleições transparentes conducentes à alternância?»
quinta-feira, 30 de abril de 2015
Fabre apela à mobilização no Togo
«Os exemplos abundam e testemunham à exaustão que uma oposição só consegue desenraizar os embondeiros políticos, que invadem todos os compartimentos da vida nacional, graças à unidade. Será que a oposição aprendeu com os erros do passado e vai preparar uma frente única de contestação?»
Confrontos na Costa do Marfim
A polícia de Ouattara tentou hoje impedir a tomada de posse de Gbabo, como Presidente do seu Partido, o FPI, reunido na localidade de Mama. Ontem, uma primeira tentativa tinha sido neutralizada pelos jovens da localidade, bloqueando a estrada com cadeias humanas, sentando-se no chão. Hoje, a polícia chegou e começou a disparar em todas as direcções. Segundo alguns jornais, registaram-se feridos, outros falando mesmo em mortos, tendo-se entretanto generalizado a confusão. Um relato consistente refere que, apesar do perigo que representam os confrontos, a população se continua a dirigir para o local em grandes grupos.
quarta-feira, 29 de abril de 2015
Ouattara na mira
Na Costa do Marfim, as coisas viram-se contra Ouattara: em vésperas de eleições, várias personalidades ligadas ao Presidente encontram-se presas ou a contas com a justiça. Os analistas parecem de acordo quanto aos óbvios sintomas de uma queda inevitável, apesar dos esforços para se manter no poder, apelando ao ódio e à violência.
«Perfila-se no horizonte uma gigantesca coligação da oposição, que desferirá o golpe de misericórdia num regime moribundo. Ouattara está acabado, no entanto, quantos são os marfinenses que o podem ler ou saber?
Qualquer ditadura passa por três etapas antes de desaparecer.
1- Mete medo ao povo no seu apogeu. Já passámos essa etapa.
2 - O povo habitua-se à repressão. Também já passámos essa etapa.
3 - Por fim, a ditadura cria as condições da sua própria queda. Nós estamos nesta etapa.»
got-TO-GO aujourd8
faUre, t'es en faute, vive le nouveau président faBre
No Togo, a tentativa de farsa eleitoral, apoiada pela França através do seu lacaio de serviço Ouattara (especialista em golpes de bastidores nas Comissões Eleitorais) corre o sério risco de descarrilar.
Um corajoso jornalista independente do jornal Aujourd'Hui au Faso, do Burkina, com larga experiência deste género de eventos adquirida no seu país, denunciou, pouco depois do anúncio precipitado dos resultados, as gritantes irregularidades.
terça-feira, 28 de abril de 2015
segunda-feira, 27 de abril de 2015
Ensinança e Governança
Escrever um tratado é algo exigente, que não se espera de um soberano: um rei manda, presumindo-se que a sua profissão o mantenha assaz ocupado. Um rei como Dom Dinis deixou-nos belos poemas e cantigas. Mas o caso de D. Duarte é diferente. Erudito e possuidor de vasta biblioteca, pouco comum em plena Idade Média, levou a sério a sua vocação literária, que o povo lhe reconheceu sob o cognome de Eloquente. Rei filósofo, projectou duas grandes obras ainda “em seendo Ifante”: o «Leal Conselheiro» e o «Livro da Ensinança de Bem Cavalgar toda sela».
Acede ao trono em 1433, para um curto reinado de cinco anos. Em finais de 1437, o Rei tem pouco mais de 45 anos, quando contrai a peste. Escreve: «Porque a razão e a vontade requerem que cada um traga à perfeição o que bem começa, se por contrários razoáveis não é estorvado, continuarei esta escritura em que passa de quatro anos pouco escrevi, com o propósito e tenção no começo escrita, despedindo-me dela mais brevemente. Que pelos grandes cuidados que me recresceram depois que pela graça de Deus fui feito Rei, poucos tempos me ficam para poder sobre isso cuidar ou escrever, (…) sem estorvar os outros grandes feitos de que sou encarregado.» Nos poucos meses que sente que lhe sobram, com o avanço da doença e o aproximar da morte, o Rei tenta finalizar, de forma talvez mais precipitada do que previsto “despedindo-me dela mais brevemente” tanto uma como outra obra.
A transcrição de um capítulo inteiro do «Leal Conselheiro» para o «Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela», evidencia a ligação, nas duas obras, a um mesmo “propósito e tenção”. Mas que intenção seria esta? No «Leal Conselheiro» as motivações manifestam-se logo no título: trata-se de política. D. Duarte, um século antes daquele que viria a ficar conhecido como fundador da ciência «política», Nicolau Maquiavel, trata do mesmo tema, mas sob uma perspectiva positiva, mais idealista, ao contrário do autor italiano, que aliás se inspiraria (na opinião do famoso Comenius) noutro rei português para a sua obra mais famosa «O Príncipe». As obras de Dom Duarte, embora precursoras nas suas áreas, ainda hoje sofrem do desprezo a que foram votadas pelos próprios portugueses, não aparecendo referenciadas nos grandes dicionários e enciclopédias das respectivas áreas. Talvez Garcia de Resende tivesse razão ao afirmar que, ao contrário dos outros europeus, «os portugueses são mais amigos de fazer do que escrever».
O «Livro da Ensinança de Bem Cavalgar toda sela» é o primeiro Tratado de Equitação. Mas, neste título, não nos deixemos enganar: trata-se bem mais de Ensinança, que propriamente de cavalgar. O próprio D. Duarte repete incansavelmente que muitas das suas considerações psicológicas («considerando o que li no coração do homem») se aplicam não só a «cavalgar, e assy em todallas outras cousas». Rodrigues Lapa, em 1934, em Lições de Literatura Portuguesa (Época Medieval), descreve-o assim: «Há no livro uma parte, que não conseguiu ainda chamar a atenção dos nossos pedagogos, nem o conseguirá jamais, se nos obstinarmos a considerá-lo apenas um compêndio de equitação. É aquela em que o autor nos fala sobre o medo na aprendizagem da disciplina. As suas observações são finas e curiosíssimas e mereciam figurar numa Biblioteca de Educação, em voluminho, com este título: A pedagogia do medo. A nossa literatura não abunda em obras deste género.»
Após breve enquadramento histórico, acerca da legitimidade dinástica, utilizarei o excerto do «Livro da Ensinança de Bem Cavalgar toda sela», dedicado à análise psicológica do medo. Tentarei mostrar, com base nesse texto, como o autor recorre ao par soberania / pedagogia e evidencia particular interesse pela formação dos seus súbditos, tal como aliás seu irmão D. Pedro, que lhe sucedeu na regência, com o objectivo da afirmação de uma relação de legitimidade já não unívoca, como era característica da sua época, mas recíproca, entre mando e mandado.
A legitimidade dinástica
Quando morre D. Fernando, o Formoso, abre-se uma crise dinástica: a rainha Leonor Teles, conhecida por «Flor das Alturas» (aludindo à sua extrema vaidade), ou mais pejorativamente «A aleivosa», era há muito odiada pelo povo, que abominara a forma assumida pelo seu casamento com o Rei. A filha única do casal fora dada em casamento ao Rei de Castela, como consequência de várias derrotas militares. O povo de Lisboa, conduzido por um burguês, revolta-se contra a «pouca vergonha» da viúva, que ainda o marido estava quente já tomara para amante um conde galego: a escolha daquele que haveria de executar o conde Andeiro recairia sobre o Mestre de Avis, filho ilegítimo del-Rei Dom Pedro, criado desde moço pelo Mestre da Ordem de Cristo, como nos conta Fernão Lopes.
Por esta altura a Europa era varrida por revoltas populares, conhecidas por jacqueries, por todo o lado reprimidas a ferro e fogo. A Rainha viúva troca Lisboa por Santarém, e escreve ao genro para a vir ajudar a reprimir os revoltosos e reivindicar o trono para seus «legítimos» herdeiros; a nobreza, obrigada pelos compromissos feudais, apoia o invasor. O destino da revolta parecia traçado. Ridicularizavam-se os partidários do «Messias de Lisboa», frente ao poder do exército castelhano, ladeado pela elite militar portuguesa. O Mestre, depois de nomeado Defensor do Reino é aclamado Rei, tomando por nome João I, ultrapassando outros melhor colocados na ordem de sucessão, como os filhos da Rainha (a título póstumo) Dona Inês. O excesso de confiança castelhano deparou em Aljubarrota com a firmeza da fé de Nuno Álvares Pereira, o Santo Condestável.
D. João I deve o seu reinado à vontade popular do povo de Lisboa e não a herança. Talvez por isso nunca mais tenha voltado a Lisboa durante o seu Reinado: a condição de «bastardo», como alguns lhe chamavam, implicava um certo «deficit». Talvez por isso tenha dado particular atenção a instrumentos de legitimação como a heráldica.
D. João casaria depois com uma nobre inglesa, Dona Filipa de Lencastre, união da qual resultariam oito filhos. O primogénito, D. Afonso, baptizado na igreja das Portas do Sol, em Santarém, viria a morrer em criança. Os irmãos ficaram conhecidos como «a ínclita geração», referindo-se os historiadores ao valor individual de cada um destes príncipes, que marcaram profundamente a História de Portugal. Não resisto a citar Fernando Pessoa, na Mensagem, referindo-se a Dona Filipa: «Que enigma havia em teu seio, que só génios concebia?»
As primeiras décadas do século XV são um momento de afirmação e enriquecimento da língua portuguesa: é originalmente atribuída a D. Pedro a utilização do vocábulo «poesia», numa clara manifestação pré-renascentista. Dos dois infantes que governaram o país conhecem-se duas obras de cada um. De D. Duarte, o «Leal Conselheiro» e o «Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela»; de D. Pedro, a carta de Bruges escrita a seu irmão D. Duarte, precisamente sobre questões de governação e o Livro da «Virtuosa Benfeitoria».
Mas o manuscrito do «Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela» só ficou conhecido na primeira metade do século XIX e está guardado na Biblioteca Nacional de Paris. A obra só viu uma primeira edição tipográfica em 1843, sendo publicada em conjunto com o Leal Conselheiro: apesar do seu inegável interesse, o livro parece ter tido pouca repercussão e publicidade. Seguiu-se, cerca de um século depois, em 1944, uma edição crítica de boa qualidade devida a Joseph Piel com intervenção do editor ao nível da actualização da grafia, ligação/separação de palavras e pontuação, reeditada em 1986.
Não há, nesta obra, referência a qualquer livro do género, exceptuando uma vaga referência ao Livro de Montaria de seu pai, obra de um âmbito totalmente diferente. O próprio autor declara logo de início «E porque não sei de outro que sobre isso geralmente escrevesse, apraz-me por esta ciência primeiro em escrito». Estamos pois perante uma obra completamente original e pioneira, que as modernas enciclopédias continuam obstinada e estranhamente a não reconhecer. A enciclopédia britânica on-line referindo-se à história da equitação: «Naples riding academy in the early 16th century, when Federico Grisone and Giovanni Battista Pignatelli tried to combine classical Greek principles with the requirements of medieval mounted combat. After Xenophon, except for a 14th-century treatise by Ibn Hudhayl, an Arab of Granada, Spain, apparently no literature on riding was produced.»
Ora, segundo o página de José Monteiro Andrade (embora contendo algumas imprecisões e anacronismos, estes não afectam a
validade da opinião expressa) D. Duarte há muito tinha reconhecido a mudança de paradigma militar, «as desvantagens guerreiras da equitação à Brida, que utilizava cavalos poderosos e pouco ligeiros, estribos compridos e cavaleiros muito sentados, relativamente à equitação à Gineta, que utilizava estribos mais curtos, que permitia a suspensão do cavaleiro, utilizando cavalos bem mais ligeiros e manejáveis. (…) Revela grande preocupação na mudança de mentalidade no uso do cavalo e na educação do cavaleiro; consciência das vantagens para a segurança do reino da aprendizagem das novas técnicas e da absorção de uma nova mentalidade; antecipação de visão e de métodos relativamente a toda a Europa…»
Psicologia do Medo
A adolescência é um momento de transição e de iniciação: a ansiedade, o medo de falhar, podem tornar-se extremamente inibidores e podem ter várias origens, como a baixa auto-estima, fracassos anteriores, etc…A segunda parte do Livro da Ensinança de Dom Duarte: De ser sem receio, é claramente uma sistematização da psicologia do medo, subdividindo-se em dez capítulos, da página 42 à 56. Na óptica do monarca, o medo de cavalgar constitui um obstáculo psicológico que o aprendiz deve ir ultrapassando. Faz uma análise do problema e dá uma proposta de solução para cada um. Ter consciência do medo e saber dominá-lo é, segundo o soberano, essencial para uma aprendizagem consistente.
Um pequeno resumo desses dez capítulos.
Capítulo 1, «Em que se declara per quantas partes todollos homeens som sem receo, e como per nacença som alguus sem receo.»
No primeiro capítulo, trata Dom Duarte das diferentes naturezas e psicologias dos homens: considera que o homem «ideal», equilibrado, tudo «faz de boa natureza: que tanto e tais coisas deseja quanto e quais bem pode governar»; sentindo-se nesta última frase a beleza da forma, num português curiosamente ainda hoje de fácil leitura. Fala igualmente da vergonha como factor de inibição, defendendo que «por bom entender e geral boa vontade os homens emendam muito, em seus naturais falecimentos e acrescentam suas virtudes». De notar ainda, neste primeiro capítulo, referência à importância da sensciência, o conhecimento de si: «(…) cada um deve trabalhar por se conhecer, e no bem que naturalmente recebeu se manter e acrescentar, e nos falecimentos emendar e corrigir.».
Capítulo 2, «Como alguus com presunçom som sem receo.»
O segundo capítulo é curto e está directamente relacionado com o assunto tratado no sexto. «Certo é que quanto cada um de si conhece (repare-se na insistente fórmula do auto-conhecimento) que melhor sabe fazer alguma coisa, a comete sem receio. E portanto, em cavalgar como em todas as coisas que fazer quisermos, se receio nos embargar de as bem fazer, trabalhemo-nos que as aprendamos. E se as soubermos, teremos nós nelas boa presunção, e logo todo ou a maior parte do receio será fora.»
Capítulo 3, «Como per desejo alguus som sem receo.»
No terceiro capítulo, distingue D. Duarte quatro motivações na vontade: prazer, proveito, honra, fim honesto. Neste último ponto, trata do ser desinteressado, «quando nos praz de fazer alguma coisa por amor de alguma virtude simplesmente, não havendo por principal intenção qualquer proveito, honra ou prazer que daí se possa seguir, mas apenas por saber que é bem o fazemos, sem esperar galardão.»
Capítulo 4, «Como por nom saber alguus som mais sem receo.»
No quarto capítulo, defende que, melhores e mais valiosos que os temerários que se atiram de cabeça por não conhecerem os perigos, são os homens conscientes e virtuosos, capazes de fazer com «que a obra em si fique boa e bem feita, fazendo-a por sua escolha, obrando o melhor para a conhecer, sentindo prazer e deleite fazendo-a.» Esta frase estaria bem para definição de obra de Arte. Por isso o Rei recomenda ainda «conhecer os perigos que geralmente acontecem, para o coração não ter de os aprender à sua custa.»
Capítulo 5, «Como per boas squeenças alguus se fazem sem receo; e de que guisa os moços e outros que / começam a cavalgar devem seer ensynados.»
O quinto capítulo é bastante maior que os anteriores e os seguintes, sendo aquele que mais interesse tem do ponto de vista das recomendações pedagógicas relativamente aos moços que estão a começar a aprender. O autor começa por declarar o que entende por boas «squeenças»: uma sequência de boas experiências, baseando nisso uma pedagogia da experimentação. Defende que não se deve tolher a espontaneidade dos aprendizes e uma pedagogia mais baseada no incentivo que na repreensão.
Para começar, «Não lhe mandem senão que se aperte com a sela e se tenha bem por qualquer guisa que achar mais jeito. E coisa que mal faça, não lho contradigam muito, antes pouco e passo a passo o corrijam. E se fizer bem, largamente o louvem quanto com verdade o puderem fazer (…) guardando sempre de o gabar mais e culpar menos». Depois de confirmados na sela, em «fortaleza e atrevimento», chega então o momento de ser mais exigente e de mudar de atitude pedagógica «e qualquer erro lhe devem contradizer rijamente e tantas vezes até que o emende».
Capítulo 6, «Como per husança os homees som sem receo.»
Em muitos capítulos, como neste, o Rei tem consciência de que a sua tentativa de sistematização se arrisca a ser redundante, pelo que recorre com frequência a fórmulas como as aqui utilizadas: «das outras partes já ditas». Essencialmente defende, como já o tinha feito no segundo capítulo e no anterior, a experiência, o uso continuado, como forma perder o receio e de obter boa presunção e confiança naquilo que se faz. E que «nunca, por estado ou idade, com preguiça perca costume», insistindo para que com a idade não se perca a usança.
Capítulo 7, «Como per razom os homees som sem receo.»
Neste capítulo trata D. Duarte dos conflitos entre razão e vontade. Tal como no capítulo anterior, insiste com os mais velhos: «Assim como os mais dos moços menos temem as quedas do que é bem, assim os homens cada vez mais as receiam do que devem. E assim como a uns mais convém conselho que se receiem e temperem, aos outros, depois que os dias carregam, convém por razão esforço e costume que não se acobardem.»
Capítulo 8, «Como per ave/rem algua avantagem som alguus homees sem receo; e como os homees som sem receo per outro mayor receo.»
Este capítulo parece resultar de um compromisso de espaço, pois trata de dois assuntos diferentes e poderia ter sido subdividido. No primeiro ponto, fala-nos D. Duarte de como o sentimento de estar em vantagem, de ser melhor que a maioria dos outros numa certa «manha», pode dar confiança. Depois, recorrendo a dois pequenos exemplos, de como os homens se tornam sem receio por outro receio maior, «Que uns em navios, temendo a força do mar, se deixam ir naufragar a terra, e outros, por temerem o fogo, se lançam de escadas abaixo», apela novamente aos menos corajosos: «E assim quem recear a míngua que é aos cavaleiros e escudeiros não saberem cavalgar, e cuidarem que, se houverem medo nunca o saberão fazer, convém que esse receio lhes faça perder grande parte do medo de cair, de tal guisa que graças a isso não deixarão de ser bons cavalgadores.»
Capítulo 9, «Como per sanha alguus homees som sem receo.»
Neste capítulo D. Duarte começa por uma questão moral: será a sanha admissível como meio de aprendizagem? Começa por considerar que «Ao bom homem é de todo escusada, porque o seu bom entender e direita vontade, com temperança e fortaleza, lhe bastam para bem direitamente viver e fazer todos seus feitos. E se para tal homem é boa em algumas coisas, sê-lo-á em haver sanha de si se mal fizer, ou dela mesma se a houver contra alguém onde e como não deve. E aos outros, que são em algumas coisas mais fracos e mansos do que a razão manda, é-lhes muito proveitosa se não for tão grande que os turve.» Completando depois com um exemplo, de como uma humilhação inicial pode ser transformada na motivação para uma aprendizagem de sucesso, tomando a sanha por manha, «E vindo a meu propósito: se algum cavaleiro ou escudeiro faz alguma coisa em que faça míngua, por não saber cavalgar, havendo sanha de si, em razão está de se trabalhar de não ficar outra vez em tal perda» e quererá «saber desta manha o que antes não sabia, nem soubera se a sanha não fora.»
Capítulo 10, «Como per graça special alguus som sem receo.»
Este é um capítulo «residual», dedicado às causas inexplicáveis através dos outros capítulos, na obtenção do estatuto de «sem receio». Que dizer «Se algum homem geralmente em seus feitos receia mais do que deve, e acertando-se em algum feito perigoso de se mostrar tão sem receio, que por isso se honra, e escusa grande mal – que diremos que faz isto senão graça especial? E veremos também alguns, sem receio em todos seus feitos, caírem por vezes em grande míngua e desonra.»
No fim deste capítulo, é interessante a forma como D. Duarte prepara a transição para a Terceira Parte: Da segurança, defendendo como o conhecimento e o entendimento «psicológico» da origem do medo, podem ajudar a vencê-lo: «E conhecendo cada um de quantas partes este receio pode vir, e como com algum bom esforço e saber se pode emendar, mais depressa e melhor poderá receber emenda do que fará aquele que não entender nem conhecer o mal donde lhe vem». Volta assim ao conhecimento de si.
Pedagogia e soberania
Agora que nos familiarizámos um pouco com a época e a obra de D. Duarte, vamo-nos então debruçar sobre a nossa questão: qual seria o «propósito e tenção» de que nos fala neste livro o autor? «Ensinança», declara-o no título. Mas porque haveria um soberano de querer ensinar os seus súbditos? Muitos não compreenderam e «disseram que não devia perfilhar tal cuidado quem outros tantos e tão grandes tem» e outras coisas do género, sendo a maior parte do prólogo dedicado a responder a estes detractores. É sem dúvida uma atitude nova.
Perante tipologias da literatura, encontrámos vários posicionamentos,
mas todos nos parecem minimizar o real alcance da obra. Consideramos
que é um livro injustamente pouco conhecido no âmbito da literatura
portuguesa, mas de um extraordinário interesse pedagógico. Se bem que
tenha sido minimizado como «prosa de corte» ou destinado apenas à
«educação dos reis», ou mesmo apresentado como «prosa moralista» fora de
moda, é de uma fina perspicácia.
Sílvio Lima, em 1937, num Ensaio sobre o desporto
dizia «O Livro da Ensinança de Dom Duarte é – cronológica e
valorativamente – o nosso primeiro tratado, completo, perfeito,
científico, de pedagogia desportiva». Esperamos ter conseguido despertar a atenção para a actualidade da
leitura desta obra, a qual, se bem que aparentemente se destine apenas à
iniciação de mancebos em artes como a da equitação, de facto é bastante
mais abrangente, contendo profundos ensinamentos aplicáveis a qualquer
arte ou técnica.
Porque haveria o Rei de lhe chamar «Livro»? Hoje, na era do e-book, os livros são para nós banais. No entanto, D. Duarte morre uma década antes de Gutenberg e das primeiras experiências de imprensa: ora, nessa altura, os livros só podiam ser reproduzidos um a um, copiados manualmente, sendo de divulgação limitada; só Reis ou grandes senhores podiam pagar esse luxo. Que leitores podia D. Duarte razoavelmente esperar? No entanto, embora se dirija por vezes especialmente a cavaleiros e escudeiros, na maior parte dos casos dirige-se a «todollos», todos os moços e homens querendo aprender. Pelo que se percebe no seu Prólogo, pretende deixar uma obra para a posteridade (mesmo se a Peste no-lo levou antes que pudesse ter tomado providências para «copiar» o seu livro, que por pouco se perdia).
Quais as motivações de D. Duarte? Que papel assume? O de mestre? No tipo de discurso que utiliza, o Rei revela grande humildade «Isto faço por ensinar os que tanto não souberem, e trazer à lembrança aos que sabem as coisas que lhes bem parecem, e nas falecidas, emendando no que escrevo, a outros poderem avisar.» Usa ainda de outra «manha»: utiliza deliberada e recorrentemente a primeira pessoa do plural, para facilitar o contacto com o leitor: «para sermos ajudados a cavalgar»; «todos os homens somos sem receio»; «podemos errar»; … apenas no primeiro capítulo da II parte, contámos 22 conjugações. O Rei equipara-se ao aprendiz! Diga-se que D. Duarte, como Rei, quis sobretudo criar consensos, envolvendo o povo nas decisões da governança: em cinco anos de reinado reuniu Cortes por cinco vezes.
«E isto não digo por me gabar, mas eu o faço por dar autoridade de minha leitura». Esta é a única referência à sua autoridade, e mesmo assim, invocando apenas uma autoridade intelectual e prática. «Escrevo o que aprendi» diz-nos D. Duarte, para ensino e «avisamento», sempre em tom de bons conselhos, grande respeito e salvaguardando possível opinião contrária. É compreensível que o discurso de D. Duarte possa ter ferido a susceptibilidade de alguns cortesãos mais conservadores. D. Duarte conheceria decerto, por sua mãe, os princípios da Magna Carta inglesa; o seu conceito de soberania parece inspirar-se na visão política de São Tomás de Aquino relativamente à monarquia.
A Magna Carta, de princípios do século XIII, implicava uma cláusula de segurança que previa que um comité de barões pudesse opor-se, pela força se necessário, a uma vontade iníqua do soberano. O poder absoluto dos reis era assim mitigado. Também a igreja procurou limitar a brutalidade e o estilo tirânico muitas vezes assumido pelos Reis na Idade Média. São Tomás de Aquino defendeu na sua Suma Teológica, que o poder do Rei resulta de um contrato: o súbdito deve obedecer, mas por outro lado o Rei está também obrigado a bem governar. Dessa reciprocidade resulta o direito de revolta: «Não se há-de julgar que a multidão age com infidelidade, destituindo o tirano, sem embargo de se lhe ter submetido perpetuamente, porque mereceu não cumpram os súbditos para com ele o pactuado, não se portando ele fielmente, no governo do povo, como exige o dever do rei.» [Escritos políticos de
São Tomás de Aquino, Rio de Janeiro, 1995, página 140].
Também em São Tomás encontramos a defesa de um carácter electivo para o soberano, tal como esteve na origem da dinastia de Avis. «É necessário seja promovido a rei, por aqueles a quem tal função compete, um homem de condição tal que não seja provável inclinar-se para a tirania. Por onde Samuel, implorando a providência de Deus para a instituição do rei, diz (1Rs 13,14): “Procurou para si o Senhor um homem conforme ao seu coração e ordenou-lhe o Senhor que fosse chefe de seu povo”.» [Idem, página 138] A verdadeira fonte de legitimidade, como ficara provado pela sua instituição dinástica, era o bem comum, e D. Duarte, tal como, aliás, seu irmão D. Pedro, sentiam-no bem. «Ordenar para o bem comum cabe a toda a multidão ou a alguém a quem cabe governar, fazendo as vezes dessa multidão». [Ibidem, página 9]
Os magotes de que nos fala Fernão Lopes lembram uma democracia, com a participação directa do povo «Passado aquel grande arroído com que as gentes da cidade chegarom ao paaço da Rainha e que o Bispo foi morto, geerou-se antr'eles üa uniom de mortal odio contra quaesquer que sua entençom nom tiinham, em tanto que neuü logar era segura aaqueles que nom seguiam sua opiniom. Cada uü dava folgança a seu oficio, e toda sua ocupaçom era juntar-se em magotes a falar na morte do conde e cousas que aviam acontecido.» Note-se que a multidão também tem limites, mesmo quando consegue impor a sua vontade: em 1383 matou o Bispo de Lisboa cujo único crime era ser castelhano. Também a turba gritara a Pilatos «_Solta Barrabás»… E este do caso lavou as suas mãos.
Embora a Suma Teológica não faça parte dos títulos listados na Biblioteca de Duarte, são referidas várias súmulas de Santos que a poderiam incluir, pelo menos ao nível de excertos ou comentários. Para além disso, logo no início do seu reinado, D. Duarte esteve na biblioteca de Alcobaça, lendo velhos evangelhos e doutrinas. Segundo Saul António Gomes [Cahiers d'études hispaniques
médiévales, nº 33, 2010, página 177], está documentado que na primeira metade do século XV «cresceu o número das traduções para português de livros litúrgicos e de devoção, nos scriptoria do Mosteiro de Alcobaça. A biblioteca era procurada por leitores exteriores, leigos e eclesiásticos, que manifestavam interesse no empréstimo ou na cópia» . Decerto D. Duarte contava com um crescente interesse pela cultura e pelos livros: um visionário, para a sua época? Em 1450 o seu filho D. Afonso V abria a Biblioteca do Paço Real ao público bibliófilo.
O mesmo autor, no seu artigo «As políticas culturais de tradução na corte portuguesa no século XV» defende que escrever «é, entre os Príncipes de Avis, tanto um acto de sublime amor pela humaniores litterae, quanto um serviço à res publica, aos portugueses, à pátria viva.» D. Duarte, tal como seu irmão D. Pedro, evidencia particular interesse e atenção dedicados à formação dos seus súbditos, no contexto da afirmação de uma relação de legitimidade já não unívoca, como foi característica da idade média, mas recíproca, tendo por objectivo declarado a formação das mentalidades e a defesa dos princípios políticos da legitimidade do poder elaboradas por São Tomás de Aquino, em torno da reciprocidade do contrato entre aquele que manda / aquele que é mandado.
Os dois infantes herdaram do pai uma saudável «busca de legitimidade», e em ambos se reconhece a preocupação em dar o exemplo, em associar Soberania e Pedagogia, em fazer acompanhar a governança da ensinança, numa atitude quase religiosa, senão mesmo mística e iniciática. Lembre-se que D. Duarte publicou uma Lei a que chamou de Mental (por já andar na mente de seu pai). O termo governança, que usamos no título, ultimamente apresentado por alguns como um neologismo, é comum em D. Duarte, que por exemplo o emprega por várias vezes na parte dedicada ao Poder, no capítulo II, Do poder da fazenda.
A intenção por detrás do «Livro da Ensinança» é quase uma «encantação», uma operação alquímica: pretende melhorar a «qualidade» não apenas «técnica», mas sobretudo humana, dos seus súbditos. Culminando o processo de aprendizagem bem conduzido, um estado especial de graça, reunindo «querer, saber e poder. E se em isto continuarmos, todas as sequências nos virão por sua direita ordenança como nos é melhor.»
Agradecimento: À Anabela Nunes, Psicóloga da adolescência, pela documentação; a João Brites, estudante de Psicologia, pelas estimulantes conversas.
Dedicatória: Aos jovens angolanos do Movimento Revolucionário, a Nito Alves, Emiliano Katumbela e Luaty Beirão, a Rafael Marques, Nuno Dala, Dago e muitos outros, que permitem alimentar a esperança numa transição tranquila e num futuro promissor para Angola.
domingo, 26 de abril de 2015
A guerra silenciosa para a manutenção da ditadura dos agentes do mal
Para início de conversa, recomendo que os angolanos não fiquem só a ver.
Um passo importante para a compreensão da realidade presente é ler o
livro de Noam Chomsky intitulado "ARMAS SILENCIOSAS PARA GUERRAS
TRANQUILAS".
ANGOLA completa 40 anos como Estado independente e
soberano. E os agentes do Mal também completam 40 ANOS NA
[DES]GOVERNAÇÃO DE ANGOLA. E não pretendem deixar o poder. Está visto
que a mudança em Angola não é possível pela via eleitoral. Não existem
eleições em Angola, aliás, existe teatro eleitoral. Fingimento para
iludir os distraídos e a hipócrita da Comunidade Internacional. O
partido do Mal continuará no poder por esta e outras vias.
Neste
sentido, como bem demonstra Chomsky, o regime está propositadamente a
criar um conjunto de problemas para depois resolvê-los. O caso
Kalupeteka é já um problema que também já está a ser usado pelo regime
para falar de "instabilidade em determinadas zonas do país". Ora,
enquanto isso, estando o país ocupado com este e outros problemas,
incluindo a suposta "crise do petróleo", será fácil o regime completar o
processo de criação de condições para manter-se incólume no poder e
desta forma continuará o grupo hegemónico de abutres a usufruir da
"parte de leão" da riqueza nacional ao passo que a maioria dos angolanos
continua[rá] na miséria, a [sobre]viver de migalhas.
Quanto à UNITA e resto da oposição, estes partidos vão continuar a LEGITIMAR A DITADURA DOS AGENTES DO MAL.
Opinião de Nuno Dala
Carta aberta a Sua Santidade
Essas afirmações configuram um verdadeiro auto-da-fé: nada de bom se pode esperar de quem começa por «Quando a religião é falsificada...»... nem vale a pena continuar.
Questionado sobre o extremismo islâmico que tem estado a ser protagonizado por organizações como o Boko Haram, o mesmo arcebispo respondeu que é o cristianismo no seu todo que está a ser atacado.
«Trazem mal estar, acabam por empobrecer muito mais o continente, aumentam o número de refugiados, deslocados e pobres, aumentam o fosso entre ricos e pobres e isso tudo vindo de uma religião que deveria contribuir para a paz e desenvolvimento». Uma religião? Os muçulmanos são todos iguais? Este é o discurso do ódio, cuja finalidade desumanamente utilitária é encobrir a ignomínia e a vergonha de um abominável genocídio, sobre o qual não se ouviu uma palavra da Igreja. Espero sinceramente que este não tenha sido promovido em nome da fé, com o beneplácito (ou sequer um nihil obstat) da minha igreja.
Despeço-me de Sua Santidade recomendando-me à Vossa benevolência