Escrever um tratado é algo exigente, que não se espera de um soberano: um rei manda, presumindo-se que a sua profissão o mantenha assaz ocupado. Um rei como Dom Dinis deixou-nos belos poemas e cantigas. Mas o caso de D. Duarte é diferente. Erudito e possuidor de vasta biblioteca, pouco comum em plena Idade Média, levou a sério a sua vocação literária, que o povo lhe reconheceu sob o cognome de Eloquente. Rei filósofo, projectou duas grandes obras ainda “em seendo Ifante”: o «Leal Conselheiro» e o «Livro da Ensinança de Bem Cavalgar toda sela».
Acede ao trono em 1433, para um curto reinado de cinco anos. Em finais de 1437, o Rei tem pouco mais de 45 anos, quando contrai a peste. Escreve: «Porque a razão e a vontade requerem que cada um traga à perfeição o que bem começa, se por contrários razoáveis não é estorvado, continuarei esta escritura em que passa de quatro anos pouco escrevi, com o propósito e tenção no começo escrita, despedindo-me dela mais brevemente. Que pelos grandes cuidados que me recresceram depois que pela graça de Deus fui feito Rei, poucos tempos me ficam para poder sobre isso cuidar ou escrever, (…) sem estorvar os outros grandes feitos de que sou encarregado.» Nos poucos meses que sente que lhe sobram, com o avanço da doença e o aproximar da morte, o Rei tenta finalizar, de forma talvez mais precipitada do que previsto “despedindo-me dela mais brevemente” tanto uma como outra obra.
A transcrição de um capítulo inteiro do «Leal Conselheiro» para o «Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela», evidencia a ligação, nas duas obras, a um mesmo “propósito e tenção”. Mas que intenção seria esta? No «Leal Conselheiro» as motivações manifestam-se logo no título: trata-se de política. D. Duarte, um século antes daquele que viria a ficar conhecido como fundador da ciência «política», Nicolau Maquiavel, trata do mesmo tema, mas sob uma perspectiva positiva, mais idealista, ao contrário do autor italiano, que aliás se inspiraria (na opinião do famoso Comenius) noutro rei português para a sua obra mais famosa «O Príncipe». As obras de Dom Duarte, embora precursoras nas suas áreas, ainda hoje sofrem do desprezo a que foram votadas pelos próprios portugueses, não aparecendo referenciadas nos grandes dicionários e enciclopédias das respectivas áreas. Talvez Garcia de Resende tivesse razão ao afirmar que, ao contrário dos outros europeus, «os portugueses são mais amigos de fazer do que escrever».
O «Livro da Ensinança de Bem Cavalgar toda sela» é o primeiro Tratado de Equitação. Mas, neste título, não nos deixemos enganar: trata-se bem mais de Ensinança, que propriamente de cavalgar. O próprio D. Duarte repete incansavelmente que muitas das suas considerações psicológicas («considerando o que li no coração do homem») se aplicam não só a «cavalgar, e assy em todallas outras cousas». Rodrigues Lapa, em 1934, em Lições de Literatura Portuguesa (Época Medieval), descreve-o assim: «Há no livro uma parte, que não conseguiu ainda chamar a atenção dos nossos pedagogos, nem o conseguirá jamais, se nos obstinarmos a considerá-lo apenas um compêndio de equitação. É aquela em que o autor nos fala sobre o medo na aprendizagem da disciplina. As suas observações são finas e curiosíssimas e mereciam figurar numa Biblioteca de Educação, em voluminho, com este título: A pedagogia do medo. A nossa literatura não abunda em obras deste género.»
Após breve enquadramento histórico, acerca da legitimidade dinástica, utilizarei o excerto do «Livro da Ensinança de Bem Cavalgar toda sela», dedicado à análise psicológica do medo. Tentarei mostrar, com base nesse texto, como o autor recorre ao par soberania / pedagogia e evidencia particular interesse pela formação dos seus súbditos, tal como aliás seu irmão D. Pedro, que lhe sucedeu na regência, com o objectivo da afirmação de uma relação de legitimidade já não unívoca, como era característica da sua época, mas recíproca, entre mando e mandado.
A legitimidade dinástica
Quando morre D. Fernando, o Formoso, abre-se uma crise dinástica: a rainha Leonor Teles, conhecida por «Flor das Alturas» (aludindo à sua extrema vaidade), ou mais pejorativamente «A aleivosa», era há muito odiada pelo povo, que abominara a forma assumida pelo seu casamento com o Rei. A filha única do casal fora dada em casamento ao Rei de Castela, como consequência de várias derrotas militares. O povo de Lisboa, conduzido por um burguês, revolta-se contra a «pouca vergonha» da viúva, que ainda o marido estava quente já tomara para amante um conde galego: a escolha daquele que haveria de executar o conde Andeiro recairia sobre o Mestre de Avis, filho ilegítimo del-Rei Dom Pedro, criado desde moço pelo Mestre da Ordem de Cristo, como nos conta Fernão Lopes.
Por esta altura a Europa era varrida por revoltas populares, conhecidas por jacqueries, por todo o lado reprimidas a ferro e fogo. A Rainha viúva troca Lisboa por Santarém, e escreve ao genro para a vir ajudar a reprimir os revoltosos e reivindicar o trono para seus «legítimos» herdeiros; a nobreza, obrigada pelos compromissos feudais, apoia o invasor. O destino da revolta parecia traçado. Ridicularizavam-se os partidários do «Messias de Lisboa», frente ao poder do exército castelhano, ladeado pela elite militar portuguesa. O Mestre, depois de nomeado Defensor do Reino é aclamado Rei, tomando por nome João I, ultrapassando outros melhor colocados na ordem de sucessão, como os filhos da Rainha (a título póstumo) Dona Inês. O excesso de confiança castelhano deparou em Aljubarrota com a firmeza da fé de Nuno Álvares Pereira, o Santo Condestável.
D. João I deve o seu reinado à vontade popular do povo de Lisboa e não a herança. Talvez por isso nunca mais tenha voltado a Lisboa durante o seu Reinado: a condição de «bastardo», como alguns lhe chamavam, implicava um certo «deficit». Talvez por isso tenha dado particular atenção a instrumentos de legitimação como a heráldica.
D. João casaria depois com uma nobre inglesa, Dona Filipa de Lencastre, união da qual resultariam oito filhos. O primogénito, D. Afonso, baptizado na igreja das Portas do Sol, em Santarém, viria a morrer em criança. Os irmãos ficaram conhecidos como «a ínclita geração», referindo-se os historiadores ao valor individual de cada um destes príncipes, que marcaram profundamente a História de Portugal. Não resisto a citar Fernando Pessoa, na Mensagem, referindo-se a Dona Filipa: «Que enigma havia em teu seio, que só génios concebia?»
As primeiras décadas do século XV são um momento de afirmação e enriquecimento da língua portuguesa: é originalmente atribuída a D. Pedro a utilização do vocábulo «poesia», numa clara manifestação pré-renascentista. Dos dois infantes que governaram o país conhecem-se duas obras de cada um. De D. Duarte, o «Leal Conselheiro» e o «Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela»; de D. Pedro, a carta de Bruges escrita a seu irmão D. Duarte, precisamente sobre questões de governação e o Livro da «Virtuosa Benfeitoria».
Mas o manuscrito do «Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela» só ficou conhecido na primeira metade do século XIX e está guardado na Biblioteca Nacional de Paris. A obra só viu uma primeira edição tipográfica em 1843, sendo publicada em conjunto com o Leal Conselheiro: apesar do seu inegável interesse, o livro parece ter tido pouca repercussão e publicidade. Seguiu-se, cerca de um século depois, em 1944, uma edição crítica de boa qualidade devida a Joseph Piel com intervenção do editor ao nível da actualização da grafia, ligação/separação de palavras e pontuação, reeditada em 1986.
Não há, nesta obra, referência a qualquer livro do género, exceptuando uma vaga referência ao Livro de Montaria de seu pai, obra de um âmbito totalmente diferente. O próprio autor declara logo de início «E porque não sei de outro que sobre isso geralmente escrevesse, apraz-me por esta ciência primeiro em escrito». Estamos pois perante uma obra completamente original e pioneira, que as modernas enciclopédias continuam obstinada e estranhamente a não reconhecer. A enciclopédia britânica on-line referindo-se à história da equitação: «Naples riding academy in the early 16th century, when Federico Grisone and Giovanni Battista Pignatelli tried to combine classical Greek principles with the requirements of medieval mounted combat. After Xenophon, except for a 14th-century treatise by Ibn Hudhayl, an Arab of Granada, Spain, apparently no literature on riding was produced.»
Ora, segundo o página de José Monteiro Andrade (embora contendo algumas imprecisões e anacronismos, estes não afectam a
validade da opinião expressa) D. Duarte há muito tinha reconhecido a mudança de paradigma militar, «as desvantagens guerreiras da equitação à Brida, que utilizava cavalos poderosos e pouco ligeiros, estribos compridos e cavaleiros muito sentados, relativamente à equitação à Gineta, que utilizava estribos mais curtos, que permitia a suspensão do cavaleiro, utilizando cavalos bem mais ligeiros e manejáveis. (…) Revela grande preocupação na mudança de mentalidade no uso do cavalo e na educação do cavaleiro; consciência das vantagens para a segurança do reino da aprendizagem das novas técnicas e da absorção de uma nova mentalidade; antecipação de visão e de métodos relativamente a toda a Europa…»
Psicologia do Medo
A adolescência é um momento de transição e de iniciação: a ansiedade, o medo de falhar, podem tornar-se extremamente inibidores e podem ter várias origens, como a baixa auto-estima, fracassos anteriores, etc…A segunda parte do Livro da Ensinança de Dom Duarte: De ser sem receio, é claramente uma sistematização da psicologia do medo, subdividindo-se em dez capítulos, da página 42 à 56. Na óptica do monarca, o medo de cavalgar constitui um obstáculo psicológico que o aprendiz deve ir ultrapassando. Faz uma análise do problema e dá uma proposta de solução para cada um. Ter consciência do medo e saber dominá-lo é, segundo o soberano, essencial para uma aprendizagem consistente.
Um pequeno resumo desses dez capítulos.
Capítulo 1, «Em que se declara per quantas partes todollos homeens som sem receo, e como per nacença som alguus sem receo.»
No primeiro capítulo, trata Dom Duarte das diferentes naturezas e psicologias dos homens: considera que o homem «ideal», equilibrado, tudo «faz de boa natureza: que tanto e tais coisas deseja quanto e quais bem pode governar»; sentindo-se nesta última frase a beleza da forma, num português curiosamente ainda hoje de fácil leitura. Fala igualmente da vergonha como factor de inibição, defendendo que «por bom entender e geral boa vontade os homens emendam muito, em seus naturais falecimentos e acrescentam suas virtudes». De notar ainda, neste primeiro capítulo, referência à importância da sensciência, o conhecimento de si: «(…) cada um deve trabalhar por se conhecer, e no bem que naturalmente recebeu se manter e acrescentar, e nos falecimentos emendar e corrigir.».
Capítulo 2, «Como alguus com presunçom som sem receo.»
O segundo capítulo é curto e está directamente relacionado com o assunto tratado no sexto. «Certo é que quanto cada um de si conhece (repare-se na insistente fórmula do auto-conhecimento) que melhor sabe fazer alguma coisa, a comete sem receio. E portanto, em cavalgar como em todas as coisas que fazer quisermos, se receio nos embargar de as bem fazer, trabalhemo-nos que as aprendamos. E se as soubermos, teremos nós nelas boa presunção, e logo todo ou a maior parte do receio será fora.»
Capítulo 3, «Como per desejo alguus som sem receo.»
No terceiro capítulo, distingue D. Duarte quatro motivações na vontade: prazer, proveito, honra, fim honesto. Neste último ponto, trata do ser desinteressado, «quando nos praz de fazer alguma coisa por amor de alguma virtude simplesmente, não havendo por principal intenção qualquer proveito, honra ou prazer que daí se possa seguir, mas apenas por saber que é bem o fazemos, sem esperar galardão.»
Capítulo 4, «Como por nom saber alguus som mais sem receo.»
No quarto capítulo, defende que, melhores e mais valiosos que os temerários que se atiram de cabeça por não conhecerem os perigos, são os homens conscientes e virtuosos, capazes de fazer com «que a obra em si fique boa e bem feita, fazendo-a por sua escolha, obrando o melhor para a conhecer, sentindo prazer e deleite fazendo-a.» Esta frase estaria bem para definição de obra de Arte. Por isso o Rei recomenda ainda «conhecer os perigos que geralmente acontecem, para o coração não ter de os aprender à sua custa.»
Capítulo 5, «Como per boas squeenças alguus se fazem sem receo; e de que guisa os moços e outros que / começam a cavalgar devem seer ensynados.»
O quinto capítulo é bastante maior que os anteriores e os seguintes, sendo aquele que mais interesse tem do ponto de vista das recomendações pedagógicas relativamente aos moços que estão a começar a aprender. O autor começa por declarar o que entende por boas «squeenças»: uma sequência de boas experiências, baseando nisso uma pedagogia da experimentação. Defende que não se deve tolher a espontaneidade dos aprendizes e uma pedagogia mais baseada no incentivo que na repreensão.
Para começar, «Não lhe mandem senão que se aperte com a sela e se tenha bem por qualquer guisa que achar mais jeito. E coisa que mal faça, não lho contradigam muito, antes pouco e passo a passo o corrijam. E se fizer bem, largamente o louvem quanto com verdade o puderem fazer (…) guardando sempre de o gabar mais e culpar menos». Depois de confirmados na sela, em «fortaleza e atrevimento», chega então o momento de ser mais exigente e de mudar de atitude pedagógica «e qualquer erro lhe devem contradizer rijamente e tantas vezes até que o emende».
Capítulo 6, «Como per husança os homees som sem receo.»
Em muitos capítulos, como neste, o Rei tem consciência de que a sua tentativa de sistematização se arrisca a ser redundante, pelo que recorre com frequência a fórmulas como as aqui utilizadas: «das outras partes já ditas». Essencialmente defende, como já o tinha feito no segundo capítulo e no anterior, a experiência, o uso continuado, como forma perder o receio e de obter boa presunção e confiança naquilo que se faz. E que «nunca, por estado ou idade, com preguiça perca costume», insistindo para que com a idade não se perca a usança.
Capítulo 7, «Como per razom os homees som sem receo.»
Neste capítulo trata D. Duarte dos conflitos entre razão e vontade. Tal como no capítulo anterior, insiste com os mais velhos: «Assim como os mais dos moços menos temem as quedas do que é bem, assim os homens cada vez mais as receiam do que devem. E assim como a uns mais convém conselho que se receiem e temperem, aos outros, depois que os dias carregam, convém por razão esforço e costume que não se acobardem.»
Capítulo 8, «Como per ave/rem algua avantagem som alguus homees sem receo; e como os homees som sem receo per outro mayor receo.»
Este capítulo parece resultar de um compromisso de espaço, pois trata de dois assuntos diferentes e poderia ter sido subdividido. No primeiro ponto, fala-nos D. Duarte de como o sentimento de estar em vantagem, de ser melhor que a maioria dos outros numa certa «manha», pode dar confiança. Depois, recorrendo a dois pequenos exemplos, de como os homens se tornam sem receio por outro receio maior, «Que uns em navios, temendo a força do mar, se deixam ir naufragar a terra, e outros, por temerem o fogo, se lançam de escadas abaixo», apela novamente aos menos corajosos: «E assim quem recear a míngua que é aos cavaleiros e escudeiros não saberem cavalgar, e cuidarem que, se houverem medo nunca o saberão fazer, convém que esse receio lhes faça perder grande parte do medo de cair, de tal guisa que graças a isso não deixarão de ser bons cavalgadores.»
Capítulo 9, «Como per sanha alguus homees som sem receo.»
Neste capítulo D. Duarte começa por uma questão moral: será a sanha admissível como meio de aprendizagem? Começa por considerar que «Ao bom homem é de todo escusada, porque o seu bom entender e direita vontade, com temperança e fortaleza, lhe bastam para bem direitamente viver e fazer todos seus feitos. E se para tal homem é boa em algumas coisas, sê-lo-á em haver sanha de si se mal fizer, ou dela mesma se a houver contra alguém onde e como não deve. E aos outros, que são em algumas coisas mais fracos e mansos do que a razão manda, é-lhes muito proveitosa se não for tão grande que os turve.» Completando depois com um exemplo, de como uma humilhação inicial pode ser transformada na motivação para uma aprendizagem de sucesso, tomando a sanha por manha, «E vindo a meu propósito: se algum cavaleiro ou escudeiro faz alguma coisa em que faça míngua, por não saber cavalgar, havendo sanha de si, em razão está de se trabalhar de não ficar outra vez em tal perda» e quererá «saber desta manha o que antes não sabia, nem soubera se a sanha não fora.»
Capítulo 10, «Como per graça special alguus som sem receo.»
Este é um capítulo «residual», dedicado às causas inexplicáveis através dos outros capítulos, na obtenção do estatuto de «sem receio». Que dizer «Se algum homem geralmente em seus feitos receia mais do que deve, e acertando-se em algum feito perigoso de se mostrar tão sem receio, que por isso se honra, e escusa grande mal – que diremos que faz isto senão graça especial? E veremos também alguns, sem receio em todos seus feitos, caírem por vezes em grande míngua e desonra.»
No fim deste capítulo, é interessante a forma como D. Duarte prepara a transição para a Terceira Parte: Da segurança, defendendo como o conhecimento e o entendimento «psicológico» da origem do medo, podem ajudar a vencê-lo: «E conhecendo cada um de quantas partes este receio pode vir, e como com algum bom esforço e saber se pode emendar, mais depressa e melhor poderá receber emenda do que fará aquele que não entender nem conhecer o mal donde lhe vem». Volta assim ao conhecimento de si.
Pedagogia e soberania
Agora que nos familiarizámos um pouco com a época e a obra de D. Duarte, vamo-nos então debruçar sobre a nossa questão: qual seria o «propósito e tenção» de que nos fala neste livro o autor? «Ensinança», declara-o no título. Mas porque haveria um soberano de querer ensinar os seus súbditos? Muitos não compreenderam e «disseram que não devia perfilhar tal cuidado quem outros tantos e tão grandes tem» e outras coisas do género, sendo a maior parte do prólogo dedicado a responder a estes detractores. É sem dúvida uma atitude nova.
Perante tipologias da literatura, encontrámos vários posicionamentos,
mas todos nos parecem minimizar o real alcance da obra. Consideramos
que é um livro injustamente pouco conhecido no âmbito da literatura
portuguesa, mas de um extraordinário interesse pedagógico. Se bem que
tenha sido minimizado como «prosa de corte» ou destinado apenas à
«educação dos reis», ou mesmo apresentado como «prosa moralista» fora de
moda, é de uma fina perspicácia.
Sílvio Lima, em 1937, num Ensaio sobre o desporto
dizia «O Livro da Ensinança de Dom Duarte é – cronológica e
valorativamente – o nosso primeiro tratado, completo, perfeito,
científico, de pedagogia desportiva». Esperamos ter conseguido despertar a atenção para a actualidade da
leitura desta obra, a qual, se bem que aparentemente se destine apenas à
iniciação de mancebos em artes como a da equitação, de facto é bastante
mais abrangente, contendo profundos ensinamentos aplicáveis a qualquer
arte ou técnica.
Porque haveria o Rei de lhe chamar «Livro»? Hoje, na era do e-book, os livros são para nós banais. No entanto, D. Duarte morre uma década antes de Gutenberg e das primeiras experiências de imprensa: ora, nessa altura, os livros só podiam ser reproduzidos um a um, copiados manualmente, sendo de divulgação limitada; só Reis ou grandes senhores podiam pagar esse luxo. Que leitores podia D. Duarte razoavelmente esperar? No entanto, embora se dirija por vezes especialmente a cavaleiros e escudeiros, na maior parte dos casos dirige-se a «todollos», todos os moços e homens querendo aprender. Pelo que se percebe no seu Prólogo, pretende deixar uma obra para a posteridade (mesmo se a Peste no-lo levou antes que pudesse ter tomado providências para «copiar» o seu livro, que por pouco se perdia).
Quais as motivações de D. Duarte? Que papel assume? O de mestre? No tipo de discurso que utiliza, o Rei revela grande humildade «Isto faço por ensinar os que tanto não souberem, e trazer à lembrança aos que sabem as coisas que lhes bem parecem, e nas falecidas, emendando no que escrevo, a outros poderem avisar.» Usa ainda de outra «manha»: utiliza deliberada e recorrentemente a primeira pessoa do plural, para facilitar o contacto com o leitor: «para sermos ajudados a cavalgar»; «todos os homens somos sem receio»; «podemos errar»; … apenas no primeiro capítulo da II parte, contámos 22 conjugações. O Rei equipara-se ao aprendiz! Diga-se que D. Duarte, como Rei, quis sobretudo criar consensos, envolvendo o povo nas decisões da governança: em cinco anos de reinado reuniu Cortes por cinco vezes.
«E isto não digo por me gabar, mas eu o faço por dar autoridade de minha leitura». Esta é a única referência à sua autoridade, e mesmo assim, invocando apenas uma autoridade intelectual e prática. «Escrevo o que aprendi» diz-nos D. Duarte, para ensino e «avisamento», sempre em tom de bons conselhos, grande respeito e salvaguardando possível opinião contrária. É compreensível que o discurso de D. Duarte possa ter ferido a susceptibilidade de alguns cortesãos mais conservadores. D. Duarte conheceria decerto, por sua mãe, os princípios da Magna Carta inglesa; o seu conceito de soberania parece inspirar-se na visão política de São Tomás de Aquino relativamente à monarquia.
A Magna Carta, de princípios do século XIII, implicava uma cláusula de segurança que previa que um comité de barões pudesse opor-se, pela força se necessário, a uma vontade iníqua do soberano. O poder absoluto dos reis era assim mitigado. Também a igreja procurou limitar a brutalidade e o estilo tirânico muitas vezes assumido pelos Reis na Idade Média. São Tomás de Aquino defendeu na sua Suma Teológica, que o poder do Rei resulta de um contrato: o súbdito deve obedecer, mas por outro lado o Rei está também obrigado a bem governar. Dessa reciprocidade resulta o direito de revolta: «Não se há-de julgar que a multidão age com infidelidade, destituindo o tirano, sem embargo de se lhe ter submetido perpetuamente, porque mereceu não cumpram os súbditos para com ele o pactuado, não se portando ele fielmente, no governo do povo, como exige o dever do rei.» [Escritos políticos de
São Tomás de Aquino, Rio de Janeiro, 1995, página 140].
Também em São Tomás encontramos a defesa de um carácter electivo para o soberano, tal como esteve na origem da dinastia de Avis. «É necessário seja promovido a rei, por aqueles a quem tal função compete, um homem de condição tal que não seja provável inclinar-se para a tirania. Por onde Samuel, implorando a providência de Deus para a instituição do rei, diz (1Rs 13,14): “Procurou para si o Senhor um homem conforme ao seu coração e ordenou-lhe o Senhor que fosse chefe de seu povo”.» [Idem, página 138] A verdadeira fonte de legitimidade, como ficara provado pela sua instituição dinástica, era o bem comum, e D. Duarte, tal como, aliás, seu irmão D. Pedro, sentiam-no bem. «Ordenar para o bem comum cabe a toda a multidão ou a alguém a quem cabe governar, fazendo as vezes dessa multidão». [Ibidem, página 9]
Os magotes de que nos fala Fernão Lopes lembram uma democracia, com a participação directa do povo «Passado aquel grande arroído com que as gentes da cidade chegarom ao paaço da Rainha e que o Bispo foi morto, geerou-se antr'eles üa uniom de mortal odio contra quaesquer que sua entençom nom tiinham, em tanto que neuü logar era segura aaqueles que nom seguiam sua opiniom. Cada uü dava folgança a seu oficio, e toda sua ocupaçom era juntar-se em magotes a falar na morte do conde e cousas que aviam acontecido.» Note-se que a multidão também tem limites, mesmo quando consegue impor a sua vontade: em 1383 matou o Bispo de Lisboa cujo único crime era ser castelhano. Também a turba gritara a Pilatos «_Solta Barrabás»… E este do caso lavou as suas mãos.
Embora a Suma Teológica não faça parte dos títulos listados na Biblioteca de Duarte, são referidas várias súmulas de Santos que a poderiam incluir, pelo menos ao nível de excertos ou comentários. Para além disso, logo no início do seu reinado, D. Duarte esteve na biblioteca de Alcobaça, lendo velhos evangelhos e doutrinas. Segundo Saul António Gomes [Cahiers d'études hispaniques
médiévales, nº 33, 2010, página 177], está documentado que na primeira metade do século XV «cresceu o número das traduções para português de livros litúrgicos e de devoção, nos scriptoria do Mosteiro de Alcobaça. A biblioteca era procurada por leitores exteriores, leigos e eclesiásticos, que manifestavam interesse no empréstimo ou na cópia» . Decerto D. Duarte contava com um crescente interesse pela cultura e pelos livros: um visionário, para a sua época? Em 1450 o seu filho D. Afonso V abria a Biblioteca do Paço Real ao público bibliófilo.
O mesmo autor, no seu artigo «As políticas culturais de tradução na corte portuguesa no século XV» defende que escrever «é, entre os Príncipes de Avis, tanto um acto de sublime amor pela humaniores litterae, quanto um serviço à res publica, aos portugueses, à pátria viva.» D. Duarte, tal como seu irmão D. Pedro, evidencia particular interesse e atenção dedicados à formação dos seus súbditos, no contexto da afirmação de uma relação de legitimidade já não unívoca, como foi característica da idade média, mas recíproca, tendo por objectivo declarado a formação das mentalidades e a defesa dos princípios políticos da legitimidade do poder elaboradas por São Tomás de Aquino, em torno da reciprocidade do contrato entre aquele que manda / aquele que é mandado.
Os dois infantes herdaram do pai uma saudável «busca de legitimidade», e em ambos se reconhece a preocupação em dar o exemplo, em associar Soberania e Pedagogia, em fazer acompanhar a governança da ensinança, numa atitude quase religiosa, senão mesmo mística e iniciática. Lembre-se que D. Duarte publicou uma Lei a que chamou de Mental (por já andar na mente de seu pai). O termo governança, que usamos no título, ultimamente apresentado por alguns como um neologismo, é comum em D. Duarte, que por exemplo o emprega por várias vezes na parte dedicada ao Poder, no capítulo II, Do poder da fazenda.
A intenção por detrás do «Livro da Ensinança» é quase uma «encantação», uma operação alquímica: pretende melhorar a «qualidade» não apenas «técnica», mas sobretudo humana, dos seus súbditos. Culminando o processo de aprendizagem bem conduzido, um estado especial de graça, reunindo «querer, saber e poder. E se em isto continuarmos, todas as sequências nos virão por sua direita ordenança como nos é melhor.»
Agradecimento: À Anabela Nunes, Psicóloga da adolescência, pela documentação; a João Brites, estudante de Psicologia, pelas estimulantes conversas.
Dedicatória: Aos jovens angolanos do Movimento Revolucionário, a Nito Alves, Emiliano Katumbela e Luaty Beirão, a Rafael Marques, Nuno Dala, Dago e muitos outros, que permitem alimentar a esperança numa transição tranquila e num futuro promissor para Angola.
segunda-feira, 27 de abril de 2015
Ensinança e Governança
domingo, 26 de abril de 2015
A guerra silenciosa para a manutenção da ditadura dos agentes do mal
Para início de conversa, recomendo que os angolanos não fiquem só a ver.
Um passo importante para a compreensão da realidade presente é ler o
livro de Noam Chomsky intitulado "ARMAS SILENCIOSAS PARA GUERRAS
TRANQUILAS".
ANGOLA completa 40 anos como Estado independente e
soberano. E os agentes do Mal também completam 40 ANOS NA
[DES]GOVERNAÇÃO DE ANGOLA. E não pretendem deixar o poder. Está visto
que a mudança em Angola não é possível pela via eleitoral. Não existem
eleições em Angola, aliás, existe teatro eleitoral. Fingimento para
iludir os distraídos e a hipócrita da Comunidade Internacional. O
partido do Mal continuará no poder por esta e outras vias.
Neste
sentido, como bem demonstra Chomsky, o regime está propositadamente a
criar um conjunto de problemas para depois resolvê-los. O caso
Kalupeteka é já um problema que também já está a ser usado pelo regime
para falar de "instabilidade em determinadas zonas do país". Ora,
enquanto isso, estando o país ocupado com este e outros problemas,
incluindo a suposta "crise do petróleo", será fácil o regime completar o
processo de criação de condições para manter-se incólume no poder e
desta forma continuará o grupo hegemónico de abutres a usufruir da
"parte de leão" da riqueza nacional ao passo que a maioria dos angolanos
continua[rá] na miséria, a [sobre]viver de migalhas.
Quanto à UNITA e resto da oposição, estes partidos vão continuar a LEGITIMAR A DITADURA DOS AGENTES DO MAL.
Opinião de Nuno Dala
Carta aberta a Sua Santidade
Essas afirmações configuram um verdadeiro auto-da-fé: nada de bom se pode esperar de quem começa por «Quando a religião é falsificada...»... nem vale a pena continuar.
Questionado sobre o extremismo islâmico que tem estado a ser protagonizado por organizações como o Boko Haram, o mesmo arcebispo respondeu que é o cristianismo no seu todo que está a ser atacado.
«Trazem mal estar, acabam por empobrecer muito mais o continente, aumentam o número de refugiados, deslocados e pobres, aumentam o fosso entre ricos e pobres e isso tudo vindo de uma religião que deveria contribuir para a paz e desenvolvimento». Uma religião? Os muçulmanos são todos iguais? Este é o discurso do ódio, cuja finalidade desumanamente utilitária é encobrir a ignomínia e a vergonha de um abominável genocídio, sobre o qual não se ouviu uma palavra da Igreja. Espero sinceramente que este não tenha sido promovido em nome da fé, com o beneplácito (ou sequer um nihil obstat) da minha igreja.
Despeço-me de Sua Santidade recomendando-me à Vossa benevolência
sábado, 25 de abril de 2015
Colocação da dívida interna abaixo de 1%
O relatório desta semana do Banco de Angola consolida a evidência de que os objectivos de captação de «poupança» interna estão a ser cumpridos à razão de um por cento, conforme já ficara patente, apesar do forcing (para evitar o make up) mediático de há 3 e 2 semanas atrás. Está tudo em velocidade de «cruzeiro»: injecção de ~300 milhões de dólares por semana; colocação de TT < 1% .
A única novidade propriamente dita da semana é portanto a substituição da «montra», com a apresentação de um novo gráfico, para substituir o «maquilhado», aqui insistentemente denunciado ao longo das últimas semanas. No entanto, a emenda é pior do que o soneto... Uma das regras básicas de apresentação de gráficos, que pelos vistos os relações públicas dessa instituição desconhecem, é evitar a redundância que transforma o excesso de informação em simples poluição. O mesmo que o pleonasmo, em matéria linguística. Quando um conjunto de dados pode ser obtido em função de outro (por soma, diferença, multiplicação, divisão, ou qualquer combinação entre estas operações), não conta, não amplia os nossos graus de liberdade. Ou seja, o que deveriam ter feito, era apresentar apenas uma linha, qualquer uma delas, e dar a fórmula (por exemplo que «a taxa média foi inferior em ...»). É muita matumbice: é como dizer que as taxas médias de referência diária do câmbio do kwanza pelo dólar estão a «subir para cima» [ou dizer «lamber com a língua» (pois havia de ser com quê?)].
Estão realmente a subir para cima e, ainda por cima, muito acima daquilo que mostram.
CC - Cara de Caso
José Eduardo dos Santos minimizou, perante o Comité Central, os «pequenos focos de instabilidade e de tensão em certas localidades». Então para que é a cara de caso?
Apela ainda, segundo o Portal de Angola, a «manifestações de repúdio contra as tentativas de pôr em causa a paz, a estabilidade social e a unidade nacional».
Que o seu desejo seja exalçado. Seja feita a sua vontade. [atendendo a que é o maior inimigo da paz, da estabilidade e da unidade]
Com esta linguagem corporal os ratos não tardarão a abandoná-lo e ao navio... Um discurso chocho e sem alma, cozinhado pelas suas penas de aluguer... Não passa já de um homem derrotado: qual a necessidade de prolongar a agonia?
France 24 traduzida
Morte de clandestino coloca a descoberto a «caça» aos estrangeiros em Luanda
Um comerciante clandestino originário da Guiné-Bissau morreu depois de ter sido percutido por um táxi, quando tentava escapar a um controlo da polícia. A sua morte provocou a cólera dos imigrantes da África Ocidental, que se dizem assediados quotidianamente pela polícia angolana.
ATENÇÃO, ALGUMAS IMAGENS PODEM CHOCAR
Na Terça-feira dia 22 de Abril, Mamadu Injai Darame, comerciante originário da Guiné-Bissau com identificação da Guiné-Conacri, dirigia-se, a pé, para o Bairro Cuca em Luanda, onde tinha por hábito apanhar um táxi para voltar para casa, depois de uma manhã de trabalho. Repara então que dois polícias de moto se aproximam, polícias conhecidos por tomarem frequentemente os imigrantes como reféns para exigirem resgate. Como não dispunha da documentação legal, tinha medo de ser expulso do país, e coloca-se em fuga em direcção de uma via da auto-estrada, perseguido pelos polícias. É então percutido por um táxi, provocando-lhe morte imediata.
A polícia angolana tenta então estabelecer um perímetro de segurança, mas é depressa ultrapassada pela multidão em fúria que acusa os polícias de estar na origem da sua morte. Os populares conseguirão finalmente tomar conta do cadáver e organizam um ajuntamento espontâneo durante dez minutos «para impedir a polícia de levar o corpo», segundo as testemunhas.
VIDEO DA MANIFESTAÇÃO ESPONTÂNEA
O embaixador da Guiné-Bissau encontrando-se fora de Luanda, foi o seu homólogo da Guiné-Conacri que esteve no local, tentando apelar à calma, em vão. Depois da chegada de reforços, a polícia conseguirá, alguns instantes mais tarde, dispersar a multidão e recuperar o corpo.
Moctar é comerciante em Luanda. Estava com Mamadu Darame, quando se deu o acidente. «Todos os dias, fechávamos as nossas lojas, e ia com o Mamadu à Praça Cuca, mas sempre com medo. Os controlos da polícia são muito frequentes: os estrangeiros [africanos, presuma-se] são sistematicamente detidos. No melhor dos casos, saem depois de pagar «resgate», que pode atingir centenas de dólares, no caso de polícias especialmente zelosos. No pior dos casos, sendo clandestino, é-se preso e maltratado, antes de ser expulso.
Mamadu tinha 45 anos. Tinha chegado a Angola há pouco mais de sete meses. Como pai de família, tinha decidido deixar a sua mulher e os seus filhos na Guiné-Bissau, para poder garantir a sua subsistência. Éramos ambos comerciantes. Conseguimos ganhar cerca de 500 dólares por mês, quando os negócios corriam bem. Nos nossos países, não conseguíamos mais do que 100. O meu amigo morreu porque queria escapar à polícia angolana para continuar a ajudar a sua mulher e filhos [por enquanto, o corpo do comerciante continua confiado às autoridades angolanas.]
Artigo redigido em colaboração com Alexandre Capron (@alexcapron), jornalista na France 24.
sexta-feira, 24 de abril de 2015
Prepotência caseira
No dia 5 de Março, o violador de Santarém, que assustara as mulheres da minha cidade, era transferido para uma cadeia de alta segurança em Lisboa. A imprensa local (e também nacional), apesar de, por alturas do 25 de Abril produzir inúmeras páginas recheadas de lugares comuns sobre a Censura no Estado Novo, procedem de forma bem mais perniciosa, porque manipuladora e sub-reptícia.
Fez-se tabu sobre «o homem», relativamente ao qual apenas interessou a idade, 42 anos, e a nacionalidade, brasileiro, omitindo-se factos relevantes sobre o respectivo empregador. O violador era caseiro da filha de José Eduardo dos Santos, que mora «numa quinta nos arredores da cidade».
Isto não é um fait divers, é notícia! Se os jornalistas não fazem o seu trabalho, com medo dos processos à Proença de Carvalho, faço-o eu.
Portugal morreu. Não passa de um miserável espectro da passada dignidade, a ponto de se venderem consciências numa imperdoável auto-censura do politicamente correcto. A que propósito haveria intocáveis em Portugal? Isso é um péssimo princípio, com o qual discordo.
Devemos a verdade aos nossos irmãos angolanos, que encetaram o processo da sua libertação. Diria mais: a prepotência convive paredes meias com a família presidencial: é por isso natural e quase congénito que engendre violadores de todo o género (à sua margem ou à sua imagem?).
Mais vítimas da prepotência da polícia angolana
Tentando confirmar, junto dos nossos irmãos angolanos da imprensa livre, esta notícia, chegámos à conclusão de que se trata de um cidadão da Guiné, mas Conacri e não Bissau. O que em nada diminui as razões da repulsa, bem representativa de um estado que embora se diga «de Direito» é um estado terrorista. O malogrado era um conhecido e acarinhado chefe de cantina no município de Cazenga, bairro desfavorecido de Luanda: abordado por uma parelha de polícias montados em motas, e conhecendo o que a casa gasta, tentou escapar à odiosa praxe da pequena corrupção endémica, acabando por ser mortalmente atropelado. Tanto o veículo como os dois polícias abandonaram o local, face à indignação da população; pouco depois chegaria o Embaixador da Guiné-Conacri, que conseguiu acalmar os ânimos.
Os armazém e lojas dessa zona comercial fecharam hoje em solidariedade com a morte de Mama Injai. Abaixo a afrofobia em todas as suas manifestações!
Começam entretanto a ser ex-filtradas algumas fotos do genocídio Kalupeteka.
Enquanto isso, a CPLP não tuge nem muge. Caladinhos que nem os ratos que são. O regime angolano, num último estertor para tentar contrariar a sua inevitável queda, engendrou uma monstruosa maquinação, envolvendo o genocídio dos seus próprios cidadãos, para assustar a população e impedir a vaga que se prepara para sair à rua, recorrendo ao terror e à intimidação. José Eduardo dos Santos ao Tribunal Penal Internacional JÁ!
Brilhante análise
Albano Pedro esgotou o assunto, no Club-K, ao colocar o dedo na ferida, imputando inequivocamente a responsabilidade ao regime, pela vergonhosa carnificina em Caála. Começando pela falácia de «ilegalizar» uma seita ilegal, as «autoridades» angolanas expõem à exaustão a paródia de mau gosto do «Estado de Direito» em que se transformaram.
Um discurso de estadista, manifestamente aquilo que fez falta a José Eduardo dos Santos. A não perder.
quinta-feira, 23 de abril de 2015
O princípio da inevitável mudança
Rafael Marques saiu de um segundo adiamento do seu julgamento como um claro vencedor, para não dizer um herói: até os polícias disputaram o seu livro!
Num importante pronunciamento, de desafio à «autoridade», cuja vontade era condenar o activista, os generais comprometem-se a melhorar o respeito pelos direitos humanos nas Lundas, precisamente o objectivo dos Diamantes de Sangue. Mais do que uma simples crítica literária, a mensagem para José Eduardo dos Santos é clara: vá-se embora a bem, enquanto é tempo.
Viva Nito Alves! Viva Rafael Marques!
(confesso que chorei ao ver a fotografia)
Economia real
Domingos da Cruz, num brilhante e oportuno artigo de reflexão económica, que o Club-K acaba de publicar, vem uma vez mais confrontar os ignorantes do regime com o seu elevado estatuto de intelectual orgânico (conceito, aliás, desconhecido pelo MPLA), demonstrando à exaustão que Angola possui uma força anímica bem mais consistente fora dos círculos do poder, com muitos dos seus filhos mais capazes sistematicamente excluídos da governação do país pela inveja dos medíocres já estabelecidos, num interminável ciclo vicioso.
Estimulado pela proposta do Mestre, ouso ir mais longe, defendendo a criação de um sistema de troca de vales: cada operador económico esforça-se por produzir o máximo, titula em vales (numerados, autenticados e com local de levantamento, nº de telemóvel e outras informações que julgue por bem) e depois troca com uma rede que se esforçará por alargar (eventualmente recorrendo à internet), para diversificar a oferta. Entretanto, com empenho e dedicação, as várias redes hão de se entroncar, formando um sistema de verdadeira economia real, que permitirá dispensar a farsa que representa a moeda do tirano.
Com um pouco de prática, estudando a evolução dos termos de troca e indexando o valor de alguns bens básicos, seria possível emitir uma moeda verdadeira, sustentável e propiciatória da iniciativa dos angolanos, sem inflacção e independente da cotação internacional do petróleo. Quanto aos kwanzas? Sempre poderiam servir, enquanto não surge uma oferta nacional de papel higiénico reciclado.
E Domingos decerto daria um excelente Ministro da Economia e Finanças.
Caçados como coelhos
O regime angolano, em busca de diversificação da economia, para a tornar menos dependente do petróleo, equaciona o desenvolvimento de um novo desporto nacional: a caça aos pobres. Apostando no segmento do turismo VIP, está previsto o lançamento do SAFARI SEITA. O pacote a providenciar pela agência estatal a criar para o efeito incluirá, para além de alojamento de luxo, o helicóptero, as armas e as munições, bem como a localização das manadas de ovelhas: só precisarão de fazer pontaria... As expectativas são animadoras, espera-se um aumento do PIB superior a um por cento, para além, claro, dos efeitos virtuosos nos objectivos do Milénio, em termos de redução da pobreza.
PS Para prevenir a desconfiança dos cidadãos, seria bom que as Forças Armadas lavassem as mãos de um eventual envolvimento num acto hediondo, odioso e inaCEITAvel.
MR sai à rua
Raúl Mandela anunciou via VOA que o Movimento Revolucionário estará na rua dia 2 de Maio para pedir a libertação dos activistas cabindas ilegalmente detidos Marcos Mavungo e Arão Tempo, no mesmo dia em que os ex-militares também o fazem.
Na opinião de Nuno Dala: «Quanto à Oposição, será que cumprirá mesmo a promessa ou - mais
uma vez - vai demonstrar que não tem coragem política? Eis a questão!» ou, noutra mensagem via FaceBook:
«O CAMINHO É A RUA!
A OPOSIÇÃO TODA DEVE LEVAR O POVO À RUA!
É PRECISO PARALISAR TODA ESTA MÁQUINA QUE HÁ 40 ANOS URINA PERMANENTEMENTE NO ROSTO DOS ANGOLANOS!»
Contribuinte português financia regime sanguinário
Portugal, violando as regras de dumping da União Europeia, decidiu oferecer a José Eduardo dos Santos um «cabaz» anti-inflacção de 500 milhões de euros, desfalque disponível a partir da semana que vem.
O Estado Português decidiu-se a aforrar moeda local, depositada no sistema bancário angolano. O curioso é ser do domínio público que não há [hoje] dólares para comprar, em Luanda, a menos de 170 kwanzas por unidade. Ou seja, os 500 milhões de euros, passam instantaneamente a valer apenas 324. No entanto, como esses depósitos ficarão à espera de vez, na extensa fila para o câmbio oficial, o seu valor tenderá, a curto prazo, para um redondo zero.
quarta-feira, 22 de abril de 2015
Bandarra, António Vieira, António Conselheiro, Kalupeteka
«Os líderes messiânicos não são psicopatas megalómanos, mas místicos ou ascetas frequentes na tradição judaico-cristã, dotados de qualificações intelectuais acima da média de seus liderados; no mínimo, homens informados, com vivência em ambientes sociais diversificados e profundos conhecedores da cultura religiosa tradicional» (NEGRÃO, 2005)
Recomendo ainda vivamente a leitura do pequeno artigo de Isaac Júnior e Luciana Pereira, do qual faço um pequeno extracto, tendo em conta que as suas conclusões, se bem que referentes à zona da Baía e Nordeste Brasileiro, podem perfeitamente ser transpostas para a actualidade angolana:
«O desejo permanente de sobreviver e sobretudo perpetuar a fé, o sofrimento muitas vezes enxergado como penitência, onde a única saída seria a crença no milagroso, com ritos e rezas. Portanto, o sebastianismo português e nordestino teve a força de vigorar em sistemas devastados, seja por ideologias ou por falta de perspectivas de vida, em que também imperava a religiosidade, e tinha como foco a possibilidade de um horizonte de deslumbre, porém, verdadeiramente real para os seus adeptos.
Como se pode perceber, em torno dos movimentos sebastianistas não podemos deixar de destacar a imaginação e o sonho idealizado, que permeia o sentimento humano. Podemos identificar em todos os movimentos citados que todos tinham em comum o tratar-se de sociedades camponesas, coletividades marginalizadas, marcadas pelo abandono político, religioso e social em que viviam. As aspirações de um povo que vê os seus valores sendo destruídos por instituições sem eficácia, acabam por esvaziar a esperança no presente e no futuro»
Quando foram os Censos, tinham achado que estavam perante uma abordagem abusiva e recusaram-se a responder... as «autoridades» foram lá, tentaram comprar o chefe oferecendo-lhe um carro e muitas mordomias (esta gente só funciona em função do dinheiro). Um impressionante número de mortos enterrados a catterpillar numa história mal contada... mas bastante reveladora da falta de expectativas e total dissolução mental da actual hierarquia angolana. A verdadeira questão sobre a qual José Eduardo dos Santos deveria reflectir, é a razão pela qual um discurso simples, de respeito pela dignidade humana, estava a atrair massas cada vez maiores, se este não lhes dava «nada» (fossem kwanzas ou dólares, subentenda-se).
Tudo isto apresentado como defesa da fé católica. No entanto, mesmo considerando o perigo que representava para a autoridade aquele que se intitulava «Rei dos Judeus», nem Pôncio Pilatos recorreu a métodos tão expeditos como os agora utilizados pelo regime angolano! Matar toda a gente, incluindo crianças! e a tortura até à morte de alguém, apenas porque pensa diferente? Enquanto isso, a voz do dono exige «profundas reflexões sobre o exercício ilegal da liberdade de culto» alertando para a «potencialidade de grupos religiosos ilegais praticarem actos contra a vida humana, devendo tomar-se medidas céleres para que preventivamente se evitem acções contrárias às leis». Tudo fica portanto justificado, à posteriori, por se tratar de profilaxia preventiva (passe o pleonasmo). Tal como os activistas de Cabinda, que foram preventivamente presos antes mesmo de praticarem o «crime».
Canudos, Pedra Bonita, Caála. E bico caálado!
É proibido sonhar.
DEAm-nos orgias!
A impoluta moral dos carcereiros de Bubo ficou ontem bem patente na demissão da chefe da DEA, a pretexto de «orgias» dos seus agentes em serviço, supostamente pagas pelos barões da droga.
Esta história «sexual» é só a ponta do iceberg! pois toda a gente sabe que as únicas pessoas que prendem, para apresentar
trabalho, são pessoas um pouco ingénuas, como Bubo, sem esperteza suficiente (como
Injai) para desconfiar das grosseiras armadilhas que armam com o objectivo de camuflar a verdadeira utilização da Agência com as suas «reservas estratégicas» de estupefacientes, órgão de financiamento
de operações político-militares encobertas, sobretudo na América Latina. Quem não se lembra do seu menino bonito, Noriega, que de bestial (enquanto apenas traficava droga para a DEA) passou a besta, quando quis defender os interesses do seu país na renegociação das condições de concessão do Canal.
De facto, a DEA é mais uma vítima da clara alteração de política norte-americana, assumindo (finalmente!) que não têm condições para continuar a alimentar o discurso de prepotência a que nos vinham habituando desde a queda do Muro. Há que proceder a alterações radicais nos procedimentos da administração... A hipocrisia e a manipulação tornam-se menos necessárias, quando deixamos de nos considerar donos do mundo, e o Outro passa a ter o seu papel! A Rússia percebeu muito bem essa alteração e está empenhada numa campanha de charme para reocupar o lugar que julga que é seu por «Direito», juntando-se à China, que entretanto também ganhou o seu lugar, nesse tabuleiro global que parece caminhar para um mundo tripolar, que terá de fazer face à multiplicação de novas ameaças, implicando realinhamentos inteiramente novos e insuspeitos, novas alianças, novos paradigmas diplomáticos e geo-estratégicos.
Resta-nos esperar que o Mundo fique a ganhar com a Nova Ordem, com alguma pacificação dos imensos focos de conflito periféricos, e, em termos de equilíbrio, relativamente à Guerra Fria (que, de facto, foi uma paz duradoura com extermínio mútuo garantido), por uma triangulação menos maniqueísta.
terça-feira, 21 de abril de 2015
Plenário
Sala dos azulejos no Palácio de Queluz
FLECtir JES
A FLEC exige a libertação imediata dos presos políticos e denuncia a prática corrente de graves atentados aos Direitos Humanos.
Auto-mobilização
De todos os desmobilizados, descartados, humilhados, que se sentem traídos por José Eduardo dos Santos (que fez de Angola um couto privado desprezando o sangue vertido).
Em solidariedade com Mário Faustino que, acompanhado por uma comissão representativa de três organizações de ex-militares, entrega hoje um ultimato ao Presidente da República no Governo Provincial de Luanda.
Ad eternum
Convidam-se todas as angolanas e todos os angolanos (convoquem as amigas e os amigos) a dirigirem-se hoje à Assembleia Nacional reunida em Plenário para que, no fim da votação aprovando a lei que sacra José Eduardo dos Santos como Presidente vitalício, possam manifestar espontaneamente e em uníssono, com vibrantes Vivas!, a sua alegria e contentamento, com mais esta vitória da democracia. O momento justifica-o.
Requiem por José Eduardo dos Santos
Um estado que não consegue providenciar à imensa maioria dos seus cidadãos condições minimamente condignas de abastecimento de água ou luz, de saneamento básico, provoca uma hetacombe, de dimensões ainda por apurar, argumentando, para legitimar a sua «limpeza», que as vítimas eram anti-sociais e se queriam isolar no mato? Então porque não os deixaram em paz ir à sua vidinha, se não incomodavam ninguém? Ficou perfeitamente documentado, com o caso Kalupeteca, não só o carácter monstruosamente totalitário da ditadura de José Eduardo dos Santos, como também o absoluto controlo dos meios de comunicação social, os quais, na ausência de espírito crítico ou contraditório, encobriram um cenário apocalíptico. Que Estado é o angolano que, sem mostras de qualquer escrúpulo, assassina em massa os seus próprios cidadãos?
Hoje Kalupeteca, amanhã Samakuva, depois de amanhã Chivukuvuku. Abatidos ao efectivo ou atirados aos jacarés, pouco importa, depois de um processo sumário.
É a apologia da arbitrariedade e da violência gratuita, veículo de uma pedagogia rasca da submissão. Conseguirá José Eduardo dos Santos intimidar e desmobilizar para sempre a todas e a todos, dividindo para reinar? Ou terá chegado a sua hora de enfrentar o julgamento final e de ser condenado às chamas do Inferno?
segunda-feira, 20 de abril de 2015
Inventona em 3 actos
Aos propagandistas do «clima propício» do Jornal de Angola, fica apenas uma pequena rectificação. A referida Lei, que consagra José Eduardo dos Santos como ditador vitalício, vai a aprovação final amanhã, dia 22.
Gostaria de evocar, a este propósito e nesta «quadra», Salgueiro Maia, às cinco em ponto da tarde do dia 25 de Abril, quando entrou no Quartel do Carmo para acertar os termos da rendição do regime. Reuniu com Marcelo Caetano, o único dos governantes presentes que conservou alguma dignidade em face da situação, o qual se lhe dirigiu aproximadamente nestes termos: «Já sei que já não governo. Arranje-me um General, para o poder não cair na rua».