domingo, 15 de fevereiro de 2015

Sol sem peneiras

O Sol, semanário de referência por terras angolanas, destapa na sua última edição, o «buraco negro» monetário que (embora de forma não tão «misteriosa» como sugeriram há dias no mesmo jornal) induziu a inflacção galopante da última semana, sob o esclarecedor título «Produtos importados estão a desaparecer das prateleiras».

Os supermercados de Luanda estão já a ficar vazios de produtos alimentares importados e as prateleiras não são repostas. Os importadores dão indicações de que os stocks estão a acabar. Também nos mercados informais, os preços dos produtos estão a subir em flecha, chegando a registar aumentos de 100% (ou mais, nalguns exemplos apresentados, nada que não se soubesse já, aliás, ridicularizando as previsões de 7 a 9% de inflacção anual divulgadas por ocasião da aprovação do OGE rectificativo, a semana passada... qual a credibilidade de um governo cujas estimativas para o ano inteiro são ultrapassadas - mais de 10 vezes mais - em apenas uma semana?).

Todos os actores económicos parecem estar empenhados em antecipar, livrando-se dos seus activos tóxicos (kwanzas) em troca de qualquer produto (cujos juros são claramente superiores aos do Banco de Angola - seria, aliás, interessante, saber como está a correr a colocação de Títulos do Tesouro, esboçada há uns dias... as pessoas não são burras! é que nem a 1000%!), que (ainda) exista no mercado a preço mais ou menos «antigo» ou «oficial».

Pelo andar da carruagem, a economia formal irá parar, por falta de «combustível». As autoridades monetárias perderam o controlo da situação, ao deixarem o «gap» formal/informal avolumar-se para mais do dobro e permitirem ao «sistema» embalar. Será agora muito difícil desacelerar: qualquer tentativa de travagem poderá bloquear as rodas e surtir o efeito contrário.

Tal como em qualquer doença, o diagnóstico precoce é uma das melhores armas. Adiar a ida ao médico, deixando apodrecer a ferida, pode revelar-se fatal. Para a crónica de uma falência anunciada, basta ler o que foi sendo publicado neste blog ao longo das duas últimas semanas. Quem souber prestar atenção, conseguirá ouvir o crescente clamor das trompas fúnebres, entoando o requiem pelo regime, que se desmorona como um baralho de cartas. Isso mesmo traduziu Orlando Castro, na Folha 8, com um esclarecedor «Até um dia» (destes), despedindo-se do «camarada» Presidente.

sábado, 14 de fevereiro de 2015

Namoro ou assédio?

Hoje é dia de São Valentim...

 _Por favor, não mande mais Rosas,
agora que não tem mais dólar.

Decretos em dia de azar

José Eduardo dos Santos procedeu a uma série de exonerações e de nomeações datadas de Sexta-Feira 13. Numa «chicotada psicológica» (aliás, em plena contradição com o comunicado do Comité Monetário do mesmo dia, para o qual «não se passava nada»), são demitidos dois vice-governadores do Banco de Angola, António André Lopes e Ricardo de Abreu, imolados como bodes expiatórios da actual crise do Kwanza, decerto por não se mostrarem suficientemente entusiastas das orientações superiores para a condução conjuntural da política monetária.

Na mesma série de decretos, é nomeado para o cargo de embaixador extraordinário e plenipotenciário de Angola na República da Guiné-Bissau, Daniel António Rosa, um alto funcionário dos Serviços Secretos. De Espião a Embaixador? Curiosa carreira diplomática... Qual das duas vocações prevalecerá?


[o agora Senhor Embaixador é considerado um «artista» na «extracção» de informações, sendo delicadamente alcunhado de «alicate de gema», numa analogia com o instrumento de precisão para o arranjo de pedras preciosas]

Como tem sido hábito, é através de decretos deste género que o Presidente angolano costuma «ajustar» a sua governação, regra geral, antes de se deslocar ao estrangeiro. Não será pois de estranhar que José Eduardo dos Santos venha a ser acometido, nos próximos dias, de algum azar, a necessitar de cuidados urgentes no exterior.

S&P desclassifica Angola

A Agência de notação de crédito Standard & Poor's, ciosa da sua reputação, degradou Angola esta Sexta-Feira, revendo em baixa o seu rating, criticando, por contraproducentes, as medidas restritivas adoptadas relativamente ao câmbio.

«A S&P também espera uma deterioração do ambiente económico e na política monetária (...) Acreditamos que expatriar capitais se tornou muito mais difícil, com o Banco Nacional de Angola a impor medidas restritivas. Notamos que a taxa de câmbio paralela é [era, há dois ou três dias] 30% mais fraca que a taxa oficial, e que há notícias de longas filas para obter um câmbio mais favorável; estas medidas pouco ortodoxas vão minar a confiança no setor empresarial e deprimir o investimento, concluem os analistas.»

Os sinais de alarme vão-se multiplicando rapidamente... Conferir notícia.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Autismo monetário

O output da reunião extraordinária do Comité de Política Monetária foi decepcionante: limita-se o referido Comité, perante o avolumar das evidências de descontrolo monetário, a fazer copy/paste dos números constantes no OGE, papagueados sem sentido nem convicção, rematados pela convocação do mesmo Comité (ordinariamente, presuma-se) para daqui a quinze dias, dando um ar de aparente «normalidade».

«(...) tem como principais indicadores de sustentabilidade macroeconómica a preservação da taxa de crescimento real do Produto Interno Bruto (PIB) em 6,6%, a manutenção da taxa de inflação dentro do intervalo 7%-9% e do nível de reservas internacionais brutas em torno dos 6 meses de importação. [inflacção entre 7 e 9%? mesmo que fosse ao mês, estaria sub-estimada]

(...) O Comité de Política Monetária reafirma o seu compromisso de utilizar os instrumentos adequados para garantir a estabilidade dos preços na economia.» [a estabilidade dos preços? sim, mas só se forem medidos em dólares]

O referido Comité, tornando-se um instrumento de propaganda política, desacredita ainda mais o sistema, perdendo qualquer credibilidade que lhe restasse. É óbvio que ninguém gosta de ver cair por terra o trabalho de mais de uma década, em poucos dias. No entanto, a melhor opção não parece ser a política da avestruz, pois pode fazer... Truz.

Câmbio do Kwanza

O filme dos últimos sete dias (úteis): os Kwanzas necessários para comprar um dólar. A linha a azul, se quiser mesmo comprar o dólar; se optar pelo câmbio representado pela linha a vermelho, é favor tirar a senha, mas tenha em atenção que há uma forte fila, o melhor é esperar sentado.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Crise de negação

O Kwanza, que chegou a ser considerada a pior moeda do mundo, valendo pouco mais do que o papel (para reciclar), estabilizou, após o fim da guerra civil. A paz e um ciclo de valorização do petróleo permitiram controlar a política monetária e até conseguir uma apreciação do Kwanza, que se manteve estável, mesmo no auge da crise financeira mundial, em 2008: tinha, por esses anos, atingido o seu máximo histórico de 75 por dólar americano. Isso foi conseguido graças a um estrito controlo da circulação monetária: a óbvia falta de confiança na economia do país (e claro, no valor da sua moeda) sendo suportada por uma política monetária de «credibilização» consistindo, pura e simplesmente, na fixação de um câmbio, um patamar estável, injectando divisas para absorver o «excedente» interno (compras de Kwanzas, em dólares, pelo Banco de Angola).

Ao fazê-lo, a moeda ficou óbvia e inteiramente exposta à cotação do petróleo, fonte quase exclusiva do maná que permitia manter o sistema em funcionamento. A quebra a que assistimos no último trimestre do ano de 2014, no petróleo, esvaziou esses recursos, à disposição do regime. Este, continuou a aplicar as suas reservas, na expectativa de uma recuperação da cotação, que não aconteceu. O ponto de «não retorno» foi atingido em princípios de Dezembro, quando desceu abaixo do custo de produção do país, como assinalei, por essa altura, aqui neste blog. Não apenas a cotação não recuperava, pior, afundava-se para mínimos históricos em décadas. Todas as reservas que o ditador possuía (sim, que não se deve falar propriamente de «Angola», mas do «negócio» familiar em que este a transformou) se esgotaram a um ritmo alucinante (e não são relatórios financeiros muito bem apresentados, com testes de stress e tudo! - mas com metodologias opacas - que o podem camuflar). Evidentemente que o calcanhar de Aquiles do Sistema Financeiro Angolano está nessa «válvula».

A nota de imprensa do Banco de Angola, datada do passado dia 9 de Fevereiro (a que já aqui nos tínhamos referido, como de exercício de «diabolização» do mercado e tentativa de arranjar bodes expiatórios para arcar com as responsabilidades da crise), agora retomada pela VOA para um artigo «inflaccionista», é por isso completamente hipócrita, sendo mais um «enfiar» da carapuça: os bancos angolanos sempre contaram com «o ovo no cu da galinha», ou seja, com um acesso ilimitado às divisas em moeda estrangeira ao câmbio «oficial» (ou artificial?). Esse achatamento cambial (por cima - note-se que a moeda nunca se valorizou «espontaneamente», nem que por breves espaços de tempo) fez o inequívoco sucesso da estabilidade do Kwanza face ao dólar nos últimos dez anos; mas fechar essa torneira tornar-se-ia rapidamente um desastre, como está a acontecer. E não vale a pena tentar tapar o sol com a peneira. Para além da negação dos factos, igualmente hipócrita, neste contexto, é a suposta «liberalização» da actividade cambial, «permitindo» aos bancos comprarem dólares no exterior: sim, mas a troco de quê? Kwanzas?

A realidade está a tratar de esclarecer o Presidente de Angola que a negação não é a melhor forma de lidar com as situações. Quem pela espada vive, pela espada morre. José Eduardo dos Santos abusou do poder que o dinheiro lhe conferia. Agora, na falta dele, terá decerto oportunidade para expiar as suas graves responsabilidades nessa situação. Não se venha queixar dos especuladores, pois estes apenas estão cá para o trazer de volta à realidade (não fossem estes exímios especialistas em dissonância cognitiva).

Sem dinheiro, não há palhaços.

A cotação informal, segundo a insuspeita VOA, já vai nos 180 por 1. A negação apenas vai acelerar a dilatação da bolha. O salto instantâneo, no gráfico do par cambial, será drástico, uma vez que a amplitude entre a realidade e a «versão oficial» está a cavar-se a cada dia que passa. Até onde está José Eduardo dos Santos disposto a prolongar a farsa? Talvez esteja a esticar a corda da paciência dos angolanos. E não são palhaçadas de afirmação pessoal ou patéticos apelos «à unidade» que mudarão o que quer que seja.

Se, há algum tempo atrás, ainda teria sido possível tentar «cavalgar» a onda, aliviando a cotação para poupar os últimos dólares, isso já não é possível e face ao grande estouro que se prepara, resta, ao Banco de Angola, tentar ultrapassar pela esquerda os especuladores, alimentando a sua insaciável voracidade imprimindo «vales» (que só valerão, claro, se o petróleo subir - rapidamente - para cima da fasquia dos $70 por barril), fazendo rolar a impressora (a última «liberdade» que resta ao Kwanza).

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Caixa de Pandora

Os males, como se sabe, são bastante rápidos a esvaziar a caixa... Se não houverem restrições encapotadas à liquidez e liberdade de câmbio, a insustentável leveza da moeda angolana deve sofrer uma forte correcção em baixa ao longo do resto da semana.

Aos comerciantes, recomenda-se que abandonem o FIFO e adoptem o NIFO, como sistema de contabilização e valorização de existências.

Gigante com pés de barro

Banco de Angola admite a emergência de um mercado monetário informal, com a cotação do dólar a atingir os 150 kwanzas. Por antecipação, desde a quebra na convertibilidade, há duas ou três semanas, o kwanza já teve uma inflacção «instantânea» de 50% (e ainda a procissão vai no adro).

[muitas vezes, é nos «pseudo-cibernautas», «agentes de opinião» (um misto de espião com contra-informador) expressamente ao serviço de José Eduardo dos Santos em espaços sociais virtuais, que se podem ler informações importantes... o seguinte excerto de comentário foi retirado da respectiva notícia do Club K, na qual o Governador do Banco de Angola negava o óbvio: a escassez de dólares.

«Sr. Governador, é necessário disciplinar e ate caso for necessário responsabilizar criminalmente os Gestores dos bancos Privados que por capricho próprio ou contas mal feitas criam situações complicadas para o Pais (Populações) com consequências que todos nós estamos a ver, so para dizer que, nas lojas ou Super Mercados os preços dos produtos estao a subir dia pois dia! A área da supervisão bancaria do BNA deve ser repensada atribuindo-lhes mais capacitação e competências, para que, com mais zelo poçam controlar e disciplinar a banca privada! Observem que, uma nota de 100 USD no mercado paralelo já esta a ser comercializado a 16 mil kz, há kinguilas (vao no Bairo Martes do Kifangondo)»


Fugiu-lhe a boca para a verdade (câmbio de 160/1). Quanto à tentativa de diabolização do mercado informal, nada que não tivesse já sido antecipado aqui neste blog. No último dia de Janeiro, reagindo à notícia das restrições nas importações, escrevi no FaceBook:

«Medida perfeitamente desnecessária, que apenas virá agravar instantaneamente o abastecimento do mercado, levando ao açambarcamento, escassez de oferta, induzindo o descontrolo da inflacção. De qualquer forma, é uma medida irrelevante, pois a quebra na convertibilidade do kwanza já havia produzido precisamente o mesmo efeito, por antecipação. Não sendo capaz de produzir localmente esses géneros, o «crescimento» tão apregoado pelo regime será duramente posto à prova nos próximos tempos. De todo o dinheiro que entrou em Angola (façam-se as contas apenas desde que a guerra acabou), qual foi a parte realmente investida na actividade económica, autonomizando-a da dependência do petróleo? Esta nova «aposta» forçada na auto-suficiência, terá a curto prazo um terrível impacto na actividade económica: as famílias, com os seus kwanzas, agora «desmonetizados», terão de suportar uma drástica redução do seu poder de compra, amplificando-se a penúria estrutural da sociedade angolana, eventualmente para níveis insuportáveis.»]

A liberalização financeira agora decidida, que se impunha, não estará completa sem a económica, enquanto não forem igualmente retiradas as restrições às importações, que tentam comprimir a saída de kwanzas. De qualquer forma, a medida não vai, por si, desacelerar a depreciação informal, pois esta é originada pela escassez da oferta relativamente à massa monetária em circulação.

Ao contrário do que pretende fazer acreditar o Banco de Angola, esta medida não virá travar a inflacção interna, mas apenas «legalizá-la», ou seja, traduzindo-a instantaneamente na cotação da moeda nacional, evitando assim que esta perca o seu papel na economia, a favor do dólar.

Lembrar o fim do sonho angolano para os portugueses.

Satélite angolano

Presidente angolano convocou Conselho de Estado para daqui a poucas horas. Será decerto interessante acompanhar a visão de Samakuva e Chivukuvuku, relativamente às opções da política monetária, numa oportunidade mediática a não desperdiçar...

O lançamento do Kwanza para níveis estratoesféricos...  Talvez valha a pena explicar que sempre foi difícil travar a especulação sobre uma moeda, quando esta fraqueja. Hoje, com os mercados financeiros em rede, é, pura e simplesmente, impossível.

Trata-se de uma batalha perdida, por antecipação. Não gastem os dólares dos depositantes. As tentativas para «adormecer», criando longas filas aos balcões dos bancos, apenas adiam (em troca da paciência das pessoas) o problema.

O resumo da última década da moeda angolana pode ser encontrado aqui. E, a partir de agora, na barra lateral deste blog, pode acompanhar as importantes variações da cotação do petróleo e do kwanza (em dólares).

O gráfico do petróleo tem ainda a funcionalidade de mostrar automaticamente, graças à passagem do rato, não apenas o período de um mês, mas igualmente a evolução para o trimestre, o ano e o quinquénio. 

sábado, 7 de fevereiro de 2015

Angola: o OGE hoje

A «revisão» em baixa do OGE angolano não passa de um amontoado de incongruências, evidenciando flagrantes inconsistências estruturais. Ontem, à saída do Conselho de Ministros que o aprovou, o Ministro das Finanças revelou os números.

Apesar da prudência da cotação adoptada para o petróleo ($40, sobretudo atendendo a que na semana passada esta parece ter encetado uma ténue recuperação), mantêm-se algumas questões relevantes:

1) Se, no ano passado, o petróleo representou mais de 3/4 das receitas fiscais, utilize-se essa estrutura para deduzir que, dos 7,2 biliões de kwanzas de receitas anteriormente previstos, cerca de 5,2 tinham essa proveniência, ficando essa parte agora (mesmo não considerando uma fatia fixa relativa ao custo de produção), reduzida a 2,6, quando calculada (por excesso) a metade da cotação do petróleo. Para respeitar a estrutura, a despesa deveria ser reduzida para cerca de 3,5 biliões. O que foi pragmaticamente resolvido, agregando à receita fiscal uma componente de «receitas patrimoniais e de endividamento», pela diferença, que se traduz em aproximadamente 2 biliões de kwanzas de endividamento líquido (estimado por defeito).

2) Entre outros, «indicadores» e «perspectivas»: o país decidiu adoptar uma política de oferta completamente inelástica relativamente à cotação, falando-se em manutenção do nível de produção... No entanto, mesmo pressupondo que isso fosse economicamente viável, é uma clara falácia que isso seja associado a um crescimento de «9% no sector», pois esse «crescimento» não se mede em barris, mas em dinheiro; ou seja, calculando a metade do preço do petróleo, seria preciso produzir o dobro, para obter esse mesmo efeito.

No entanto, todo o raciocínio anterior tem uma grave falha: o OGE angolano não é expresso em dólares, como o petróleo. Ou seja, o OGE arrisca-se a pecar por defeito, com as receitas fiscais do mês de Dezembro a ultrapassarem em muito as estimativas para todo o ano. Talvez seja melhor o Banco de Angola encomendar já o papel, pois a massa monetária arrisca-se a ser escassa para o nível de preços e seria pouco sensato deixar instalar uma dolarização da economia.

3) Deve haver uma gralha: no fim do artigo, onde está «na última previsão do Governo, a inflacção deverá este ano oscilar entre os 7 e os 9%», para não falhar muito, o Senhor Ministro deveria ter acabado a frase com «por mês».

A propósito do «milagre» do OGE rectificativo, vejam-se também as declarações do Presidente.

É muito bonito que Portugal exporte para Angola, este parceiro representa avultadas receitas. Era igualmente bom que, às receitas, correspondessem os respectivos recebimentos. No entanto, se não pagaram no tempo das vacas gordas... Os portugueses já deveriam ter aprendido com os erros: a antiga COSEC que o diga (para não falar de empresários avulso)!

Glossário:

Receita, entende-se o registo contabilístico de algo que se vendeu ou produziu, por contrapartida da dívida assumida na factura pelo comprador, valor que será mais tarde «anulado», nessa conta, pelo recebimento em caixa da quantia correspondente, titulado pelo respectivo recibo. Venda > Receita > Recebimento

A perspectiva de um fluxo financeiro deve ser considerada a título de variações ao «passivo» e expurgado da actividade económica (e não misturado, para aumentar a sua opacidade). Portanto, o défice real implícito, no agora revisto orçamento, é muito maior. Em tempos de refluxo financeiro, uma economia que necessita de um fluxo exógeno tão importante (porque perdeu a sua quase mono-fonte de financiamento - o petróleo representa 98% das exportações), não parece ter grande credibilidade, logo, grande futuro. Emprestar dinheiro a Angola é contribuir para a manutenção de um regime ditatorial, corrupto, ineficiente e em estado terminal, comportando, evidentemente, um risco muito elevado.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Post-scriptum local

Entretanto, lembrei-me, no tocante a Portugal, do momento de escassez monetária que se seguiu ao advento da República

[que as gentes de Santarém, com as de Pernes e Alpiarça, ajudaram a implantar, defendendo a «rotunda» (hoje o Marquês de Pombal), o verdadeiro «abcesso de fixação» das forças monárquicas e que se constituiu na charneira da revolução.]

Face ao desaparecimento dos trocos, cujo valor metálico superara o nominal, muitos deram provas de criatividade, como, por exemplo, criando «capas» para selos. A garantia do valor, que se transformara assim em massa monetária, era o selo novo, que podia ser retirado e utilizado para enviar uma carta. O equivalente hoje a 50 cêntimos (o custo de uma carta em correio azul).

Muitas Câmaras, suprindo a ineficiência estatal, emitiram a sua própria moeda, recuperando fugazmente o fulgor do municipalismo. A Câmara de Santarém também o fez, podendo ver-se na imagem uma dessas cédulas, de dois centavos, numeradas na frente, lado a lado com uma alegoria à República, e representando no verso a Ponte Dom Luís, sobrepujada pelo Marquês de Sá da Bandeira.

Contra-ficção fiduciária

Um último artigo, para completar a recente série de reflexão monetária.

E gostaria de começar pela célebre parábola da galinha dos ovos de ouro. Como todos já tiveram oportunidade para constatar nas suas vidas, no ambiente monetário em que estamos imersos, a ganância é o móbil que o dinheiro gera para se multiplicar, constituindo-se num motor da História. O dinheiro representa poder (de compra, claro, mas isso é generalizável...). A ganância é a sede desmesurada desse poder, tal como a gula é o «pecado» associado ao comer, ou a luxúria ao prazer. A partir de um certo ponto, a «apetência pelo lucro» torna-se socialmente patológica e psicologicamente castrante, destruindo o seu próprio objecto, tal Narciso envaidecido. O «símbolo» da riqueza não deve consumir a própria riqueza, destruir a possibilidade de esta se reproduzir natural e sustentavelmente, sob pena de atrofio e regressão...

É de relembrar, neste contexto, a primeira «crise» financeira da Guiné, que se consegue perceber pela análise do decreto de D. João II, mandando aos judeus que devolvessem aos guineenses as «conchinhas» que estes tinham entesourado em Lisboa, a título de dinheiro, proibindo a sua entrada na metrópole. De facto, quando os barcos voltaram aos rios da Guiné, aperceberam-se de um curioso efeito pernicioso: o esgotamento da «massa monetária» em circulação encarecera, paradoxalmente, tudo aquilo que os portugueses compravam.

Numa concepção simplista, pode considerar-se aquele sistema monetário como «primitivo». No entanto, este sistema decerto estava, antes de os portugueses chegarem, num certo equilíbrio, sem grandes alterações na economia e nessa massa monetária, uma vez que o mar apenas produzia uma quantidade limitada por espaço de tempo (perdendo-se, ou, de alguma forma, destruindo-se igualmente algumas pelo caminho) e não haver grande propensão para um entesouramento sistemático, servindo apenas na sua concepção básica de meio de troca e não como capital (como reserva de segurança ou símbolo de poder).

Uma outra história, sobre o mesmo assunto, vem-nos do Brasil, da Baía. Efectivemente, algum espertalhão que passara pelos rios da Guiné, decerto passeando pelas praias do outro lado do Atlântico, descobriu a mesma «conchinha», que lhe tilintou à vista como se fosse dinheiro. É claro que não perdeu tempo e ainda hoje os brasileiros se riem de ter enganado os africanos, pois mandavam para o outro lado «conchinhas» e recebiam, em troca, pessoas! Saltando o aspecto imoral desse trato, que agora nos não ocupa, para nos concentrarmos nas questões monetárias, seria interessante pesquisar se existe algum relato dos termos dessa troca e sua evolução. Será que a introdução de grandes quantidades de moeda, alterando significativamente a massa monetária em circulação, não veio introduzir um forte efeito de inflacção? Nem sempre! Como vimos, já no tempo de D. João II, o raciocínio pode não ser linear.

Mas está na hora de sair da concha e voltar ao dinheiro, que, como mostra esta história, é uma poderosa ficção, não dependendo apenas da sua escassez ou das necessidades reais de troca constituídas, podendo construir-se (ou descontruir-se) na base de expectativas (ou de temores). E aqui, parece-me a propósito relembrar a história de contrafacção de Alves dos Reis (a Waterloo de Salazar). Por ocasião da série televisiva (bem rasca, diga-se de passagem), algumas pessoas defenderam que o falsário poderia ter «mudado a história» e «desenvolvido» Angola (como parecia ser sua intenção, com o fruto do seu «labor»). No entanto, é legítima a mesma questão que para as «conchinhas»: será que essa «hiper-abundância alienígena» de dinheiro não iria aumentar a inflacção e recolocar as coisas em equilíbrio, a preços mais altos? Ou, pelo contrário, poderia de facto ter desenvolvido Angola, acabando por se justificar a si «própria»? Não haveria, a meio desses loucos anos 20, expectativas suficientes de desenvolvimento, que ultrapassassem o conservadorismo fiduciário de Salazar? Nada faz supor o contrário, tornando-se esse simples exercício de imaginação uma crítica implícita às «vistas curtas» de Salazar, em certos domínios.

Esta história de contrafacção lembra-me o meu muito estimado e arrojado professor de Economia Pedro, um ultra-liberal, o meu «Chicago Boy» preferido, como tive ocasião para lhe manifestar pessoalmente, em conversas «monetárias». Na sua opinião, o Banco de Portugal (esta conversa foi ainda no tempo do Escudo, mas conserva a sua actualidade), ou melhor, os bancos centrais, é que eram (e continuam a ser e cada vez mais) os verdadeiros falsificadores, ao reservarem para si o monopólio da emissão de moeda (ainda para mais, desde que deixaram de fazer corresponder aos valores emitidos uma certa quantidade de ouro). Pugnava veementemente Pedro Arroja pela liberdade da emissão de moeda para todos (não só para países, mas para instituições ou mesmo particulares), defendendo a «selecção» natural da moeda (ou seja, que a boa moeda exota a má).


Fala-se hoje muito do perdão parcial da dívida alemã, após a Segunda Guerra mundial. Eu quero lembrar, neste contexto, o período de hiper-inflacção (que os filatelistas e numismatas conhecem bem, designando esse verão louco de 1923 - muito bem retratado no romance de Erich Maria Remarque O Obelisco Negro - pela abreviatura de «infla»). Vergada pelo peso das indemnizações de guerra, o marco perdeu credibilidade, gerando uma espiral de inflacção descontrolada. Nalguns sítios, o dinheiro dos ordenados era simplesmente pago à pazada, a olho. Gerou-se uma economia paralela (aliás, a única «real») de troca de vales. A república de Weimar só conseguiu colocar um travão (o limite, evidentemente, é o céu, os selos em marcos atingiram os «trillionen»! - para ter uma ideia da proliferação de zeros basta olhar para a nota de duzentos milhões) na desvalorização «hipotecando» à moeda bens nacionais. Paradoxalmente, a infla teve efeitos revigorantes na anquilosada economia alemã, que vivia das rendas (que entretanto se volatilizaram), obrigando os alemães a uma saudável e dinâmica iniciativa económica real, da qual ainda hoje beneficiam.

Em Portugal, temos um exemplo parecido de uma redistribuição entre capital e trabalho, que permitiu atenuar os efeitos da crise mundial derivada do choque petrolífero de 1973. E o aumento da procura solvável, longamente reprimida, teve um impacto considerável nesse efeito. Claro que as virtualidades da emissão devem idealmente ser cobertas pelo aumento consistente da respectiva actividade económica, que titulam e fomentam. Descansar sobre os remos, cristalizar, abusar da tipografia, conduz inevitavelmente a correcções em baixa ao seu valor. Mas é igualmente condenável cair no extremo oposto, espartilhando a actividade económica num refluxo de crédito, condenando enormes legiões à inactividade e ao desemprego, enorme desperdício de competências e utilidade social.

O mundo encontra-se perante uma encruzilhada: a falência radical do mito da abundância capitalista, muitos anos alimentado como propaganda em direcção aos muros de Leste, está tornar o globo insuportável, dando origem a uma miríade de conflitos locais, alimentados pela exclusão e por um conceito de «pobreza» ordenado a conservar o status quo num imaginário financeiro em «arrefecimento», em contracção. É toda a mentalidade subjacente ao «bezerro de ouro» que está em causa. Será que a apropriação desenfreada é desejável? E será sustentável? Não haverá outra Ordem Mundial mais adequada, que não fomente conflitos nas margens do sistema? Como questionava Jean Baudrillard, comparando a nossa sociedade monetarizada com a africana: quem serão os verdadeiros pobres? Aqueles, que, sob o signo da prometida abundância, vivem na escassez (aspirando a um standing superior, que se traduz em dinheiro, o qual é sempre pouco e os mantém constantemente insatisfeitos); ou aqueles que, sob o signo da escassez, aqueles que nada têm e vivem na partilha e numa verdadeira abundância, por ela proporcionada?

Enfim, África ensinando a gente, como diria Paulo Freire...

Lamber com a língua

Pois haveria de ser com quê?

Agora a LUSA faz pleonasmos grosseiros?

«Os EUA mantêm ainda as acusações de tráfico sobre António Indjai, ex-Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas da Guiné-Bissau, demitido do cargo em setembro pelo Presidente da República, José Mário Vaz, e que se mantém em território guineense.»

Fonte: Lusa 
- O Democrata

 A frase deveria acabar em José Mário Vaz. Quem encomendou a última frase? Ora se o General Injai é guineense, em que «território» queriam os senhores jornalistas que se «mantivesse»?

A LUSA pretende substituir-se à Justiça de um país estrangeiro? Esta frase é altamente insidiosa, desprestigiante e mesmo indigna, enunciada por uma agência noticiosa nacional. O alienado que a produziu (a construção não engana) deveria ser liminarmente despedido, se ainda houver responsabilidade na casa. Se recebeu indicações para isso, o caso piora. Tendo a agência diluído o nome do pseudo-jornalista, assume por isso plenamente a gravidade da sugestão, sujeitando-se a LUSA à vergonha de poder ser legítima e legalmente processada por difamação. Suponho mesmo que a própria Polícia Judiciária, da qual mantenho uma elevada ideia de profissionalismo, estaria interessada em ver esclarecido este caso (assumindo, pelo seu carácter científico, que nada tem a ver com a formulação dada pelo jornalista, tendo as mãos limpas desse género de intenções «políticas» subjacentes).

Já agora, a «apresentação» (para inglês ver) tresanda a neocolonialismo básico.

E por que razão a «cooperação marítima» perde um «o» pelo caminho e vira «polícia do mar» SEACOP? A função policial não constitui parte inalienável da soberania de um país?

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Um por cento


A 11/11 do ano passado, o kwanza, sob pressão da depreciação do petróleo, furava a barreira psicológica dos 100 por 1 face ao dólar, passando a expressão a três dígitos. O regime tem (até aqui) controlado a sua política monetária, como se percebe pelo gráfico «chato» do câmbio relativamente ao dólar, na perspectiva da última década, com muitos patamares sustentados.

Negociando acima dos 90 por 1 há dez anos, depois de uma primeira experiência no novo patamar dos 80 por um, cancelada pelo Pai Natal (às 00h00 do dia 25 de Dezembro), o rácio seria retomado no dia 5 de Fevereiro de 2006, há precisamente 9 anos. No fim de Abril de 2007, entrava-se num novo patamar e máximo histórico, dos 75 kwanzas por dólar, o qual durará estável por cerca de dois anos.

Findo o primeiro trimestre de 2009, alguma turbulência e uma ligeira baixa, duram até ao princípio de Outubro desse ano, quando, antes de uma depreciação brusca, foi reposto o anterior nível, por um curto espaço de tempo.

[Faz sentido a interrogação pelas razões desses breves «contra-ciclos»: representarão uma forma de castigar especuladores (técnica que era muito apreciada por Cavaco Silva, no Banco de Portugal, no tempo do escudo), ou, por outro lado, de beneficiar grandes volumes de câmbios «amigos» à custa do Estado?]

Mas retomando a análise do gráfico. Até ao fim de Janeiro de 2010, a descida é «suavizada», vindo o segundo trimestre do ano a apresentar novamente uma turbulência inusitada. No fim de Agosto, um novo pico, parecendo querer retomar o patamar dos 90 por 1, é rapidamente contrariado, por um câmbio «bastardo» de 93 por 1, em torno do qual se negociará durante cerca de um ano.

Em Setembro de 2011, novo acerto, relativamente brusco, para os 95 por um, encetando novamente uma trajectória descendente de inclinação suave. que se estenderá pelos anos de 2012 e 2013, perdendo, nessas contas, um por ano, até aos 97 kwanzas por um dólar. Atente-se que em 2013 a volatilidade da moeda angolana face ao dólar dava já mostras de aumentar um pouco, embora sem grande expressão...

Apesar de nos últimos anos se notar algum dinamismo económico no país, baseado na «importação» de empresários portugueses, o modelo tem bastantes limitações, como já aqui apontámos, em tempos. O investimento realizado foi essencialmente no comércio para altos segmentos de mercado angolano, poupando estes às sempre incómodas deslocações a Lisboa para irem ao supermercado e às lojas chiques.

Em fins de Setembro do ano passado, o kwanza encetou novamente uma fase descendente, concomitantemente com a queda do dólar. No entanto, o Presidente angolano, embora tenha esconjurado os perigos na sua mensagem de Ano Novo, parece ter entrado em processo de negação. Com receitas nulas, aparenta ter perdido a cabeça, recorrendo a concessões «EE» (especiais e encobertas) aos chineses em troca de mega-financiamentos que lhe permitam sustentar a farsa por algum tempo mais, na expectativa da uma retoma da cotação do petróleo.

Ao mesmo tempo que restringe o acesso ao dólar por via bancária, proíbe, à boa maneira soviética, a importação de géneros, para evitar a sangria estrutural da frágil economia angolana, estrangulando-a assim irremediavelmente. Pior, empurrando para cima dos portugueses o ónus da especulação e açambarcamento, relativamente ao descontentamento (e estou a ser simpático, quero ver quando faltar a cerveja em Luanda!) que essas medidas não deixarão inevitavelmente de gerar.

O passo seguinte será decerto a diabolização do mercado negro (o qual as autoridades estão evidentemente a fomentar, com estas medidas), transformando comerciantes em bodes expiatórios. A tentativa de esticar a corda conduzirá rapidamente a moeda «real», de um por cento do dólar a um por mil. Do centésimo ao milésimo num ápice. Mais zero, menos zero, claro... É que, basta olhar para o gráfico do preço do petróleo, bastante mais «a pique», para reparar que o kwanza está sujeito a uma «margem» de correcção muito maior.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Sistema monetário

Passei há alguns dias pelo Arquivo Histórico da Marinha. Fiquei impressionado ao descobrir a dimensão desta componente da Biblioteca da Marinha, instalada no amplo edifício da Cordoaria Nacional (com espaço para esticar cordas com 400m - ou correr um estádio sempre a direito). Uma enorme extensão de prateleiras, com os riquíssimos arquivos da já velhinha Marinha portuguesa, onde aparentemente tudo se encontra bem organizado e documentado, desde a construção das naus, ao abastecimento, diários náuticos, enfim, um «mar» sem fim de informações, de enlouquecer um amante de história.

Por curiosidade dei uma breve vista de olhos pelos tempos de Honório Barreto, o guineense que dava lições de patriotismo luso aos portugueses vindo a ser Governador da Província da Guiné durante muitos anos, e Comendador da Ordem de Cristo. A sua vida dava um conto! O BNU, decerto lembrado disso, emitiu a respectiva nota de mil escudos (ainda com cobertura estipulada em ouro), ou um milhão de reis.


Um pouco ao acaso, encontrei um interessante relatório do ano de 1844, inserido num Almanaque para uso da Marinha, do qual transcrevo uma parte relativa ao «sistema monetário». Ainda há pouco tempo falava aqui neste blog de «escassez monetária»: já há quase dois séculos relatavam estar perante uma situação muito parecida (já aqui relatei outro caso, no tempo de Dom João II, há mais de 500 anos)...

«Não há moeda especial nesta província: a que gira como tal com um tipo fixo, e por isso se reputa moeda provincial, é a moeda antiga de prata brasileira, a qual corre na Praça de Bissau, pelo seu valor nominal (múltiplos de 320 réis), e nesta moeda, que ali se chama fraca, se cobram as rendas e se pagam os encargos. Só ao Governador e Secretário Geral e Juiz de Direito, e ao pessoal do Exército e Armada, se paga em moeda forte, que é a moeda de ouro e prata de Portugal, e na falta desta recebem a moeda fraca com o agio estipulado de quatro por cento. Gira também pelas mãos dos comerciantes e do povo (que não coloca nenhuma dificuldade em aceitá-la) grande variedade de moedas de prata das diversas nações que frequentam nossas Praças, mas sem câmbio determinado, com valor variável dependente de convenções: o duro espanhol e o dólar inglês são as mais aceites e quase sempre recebidas pelo valor de mil réis; o dólar americano, o peso mexicano, o rixdale alemão, o escudo francês ou italiano, correm as mais das vezes pelo valor de oitocentos réis : na mesma proporção as fracções. A moeda de cobre e bronze de Portugal (única que ali gira e sempre em quantidade muito reduzida para as necessidades mercantis), serve de troco alternativamente à moeda forte e à moeda fraca, sem diferença.

Para o interior do sertão não há qualquer circulação de numerário (o que dificulta, e não pouco, as transacções): apenas os negociantes de grosso trato efectuam algumas vendas a estrangeiros a troco de moedas de prata e ouro, que aforram ou mandam para fora, porque as gentes as não estimam e o povo das praças não está afeito a elas: tudo ali é resgate e troca; o próprio Governo paga aos seus empregados em géneros (cuja maior parte nem sequer são de produção nacional). Esta prática, além de tolher a circulação do numerário, desmoraliza os empregados, obrigando-os a serem mercadores, e ainda mais os soldados, a quem se dão em pagamento grandes porções de aguardente, com a qual se embriagam.» 

Um pouco mais à frente, é descrita uma pitoresca forma de negociar: «a olho». As companhias comerciais eram aliás e curiosamente conhecidas, na gíria, como de «olho vivo»:

«Nas alfândegas são adoptados os pesos e medidas portugueses, mas no trato com o povo, as medidas são todas de convenção no momento do ajuste, servindo-se para medir o arroz e grãos de côfos de diversas grandezas, tudo o mais vendendo a olho.»

Transcrevo um último excerto, no qual surge uma reivindicação ainda hoje actual. O descasque local do arroz!

«Dos géneros que se podem exportar da Guiné, já eu falei extensamente no capítulo anterior: são eles em resumo - os couros de boi, búfalo e anta, peles de onça, gazela e fritambá, cera, óleo de palma, arroz de diversas qualidades (cuja receita aumentará muito em valor, se se estabelecerem nas nossas Praças moinhos para o descascar), tartaruga, algum ouro do Geba, plumas de Gemé, madeiras para a construção naval, marcenaria e de tinta, incenso, goma arábica, algum café (bravo, mas de sabor delicado) e algum óleo de cola. Os géneros que mais se enviam das nossas Praças para o sertão, pelos rios, são o sal e a cola».


A Marinha homenageou Honório Barreto dando o seu nome a uma Corveta, aqui com a sua guarnição em formatura.


As estatísticas do Comércio externo da Província (aparentemente largamente excedentária) são fortemente criticadas no mesmo relatório (incluindo a metodologia de extrapolação de um trimestre para o ano inteiro), afirmando o autor que representam, na sua estimativa e apesar da abolição da escravatura, apenas cerca de um sexto daquilo que havia sido realmente transaccionado no território. A parte de contrabando não engana, quanto ao poder real da potência «colonial», apesar das esforçadas diligências de Honório Barreto.

domingo, 25 de janeiro de 2015

Mise en garde

Voltando às questões monetárias, as quais, por reflectirem as tensões económicas e o choque de interesses à escala mundial, constituem um bom indicador do momento que actualmente se vive. Ramos-Horta partilhou no seu blog uma notícia do The Guardian, sobre o encontro de Davos, onde os oligarcas mundiais se costumam reunir para trocar as impressões sobre o andamento dos seus negócios.

Os sinais pressentindo que algo vai mal avolumam-se: até a insuspeita Cristrina (que foi cooptada depois de terem tramado DSK com um escândalo sexual, só porque, precisamente, alimentava um discurso «alarmante»), à frente do FMI, avisa que a bolha que se dedicaram a alimentar à lagardère, pode estourar a qualquer momento, despertando o fantasma de Marx, que previa que o capitalismo continha, em si próprio, as sementes da sua própria destruição...

Efectivamente, o capital precisa não apenas de ganhos de escala ou de produtividade, mas igualmente de procura solvável. Já Ford quis dar o exemplo, potenciando o salário dos seus empregados, para que pudessem adquirir, eles próprios, o seu modelo T...

A massa monetária cresceu sustentavelmente, até à Primeira Guerra, baseada ainda no modelo colonial e europeu; após essa Guerra, voltou a crescer, graças a mais avanços tecnológicos já liderados pelos EUA, que criaram expectativas um pouco loucas e eufóricas, as quais levaram a uma esquizofrénica especulação raiando a pura aldrabice, cuja rectificação, graças a novos acordos sociais e a outra Guerra mundial, levaram mais duas décadas, a que se seguiu novo período de crescimento sustentado, com um certo equilíbrio capital-trabalho, de certa forma garantido pelas tensões da guerra fria e pelo equilíbrio do terror nuclear. As grandes despesas da guerra do Vietnam e o impacto da crise petrolífera de 1973, obrigaram os EUA a abandonar, nesse ano fatídico, a garantia ouro do dólar.

Durante estes anos de crescimento, a prudência herdada da crise anterior foi-se perdendo, tendo a própria indústria passado a fomentar o crédito como forma de promover as suas vendas. No entanto, como todas as «bolhas», esta também teve o seu refluxo, contendo em si as sementes da sua própria etc, etc. Na concepção simplista do «Engenheiro» Sócrates (que corresponde precisamente ao cerne do paradigma em colapso), as dívidas «não são para pagar». Muitas famílias conhecem o esquema: ir fazendo empréstimos cada vez maiores, para pagar os anteriores. No entanto, esse género de comportamento comporta, evidentemente, um risco sistémico. Ao entrar em refluxo, o saldo tende a evoluir negativamente, entre o capital e a economia real, dando origem à contracção da massa monetária em circulação, à deflacção e à crise. Isso foi ainda, durante algum tempo, contrariado pelo aumento da circulação de dinheiro virtual, primeiro sob a forma de cartões de crédito, depois com os meios de pagamento electrónicos.

A queda do Muro, o lançamento do Euro, que se pretendia viesse a fazer frente ao dólar como moeda de troca internacional, coincidiram com mais uma «aliança» mundial liderada pelos EUA, desta vez, à falta de contra-ponto, tomando um inimigo esquivo e imaginário. Os EUA são peritos nesse «jogo»: à falta de ameaças, inventam-se, de todas as peças, se necessário. Em 2008, começaram a rebentar as bolhas financeiras mais evidentes... deixando, como se sabe, a careca à mostra em muitos países. Entretanto, um outro factor veio influenciar o mercado financeiro: a sua banalização informática, que colocou ao alcance de qualquer um o acesso instantâneo à negociação, à escala global, de activos financeiros, cujos mecanismos de alavancagem vieram igualmente amplificar a massa monetária, adiando uma eventual ruptura do modelo.

A China, como país emergente, tem absorvido, até agora, a maior parte da emissão de dívida americana, substituindo o Japão nesse papel. Ou seja, o actual modelo era insustentável por muito mais tempo, apesar do facto de a China não estar interessada em acabar com um status quo internacional que julga favorável à manutenção dos seus interesse, continuando a comprar dólares, para não depreciar o imenso stock que já detém, no pressuposto de que esta moeda lhe faculta o acesso às matérias-primas de que necessita: estava apenas a financiar o seu próprio crescimento, sub-indexando-se ao dólar. Esse foi o problema: o desafio do euro, que era partilhar com o dólar o papel de moeda de referência internacional parece não ter dado resultados, face aos problemas sul-europeus e a uma crise de confiança. Estava portanto na altura de uma valente chicotada psicológica, ao nível de quando enterraram unilateralmente Bretton Woods, baseados na sua própria supremacia.

O dólar auto-sustenta-se, ou seja, como moeda de referência, os Estados Unidos não precisam de ter reservas. A sua moeda É a reserva. Conta-se a piada, não sei se não terá algum fundo de verdade, de que o Fed (Banco Central EUA) mandou imprimir uma nota (exemplar único) de um trilião de dólares para colocar no sítio onde devia estar o ouro, para garantir os portadores do anúncio fiduciário: é como descascar uma cebola, para encontrar... a cebola! Por isso, a desvalorização face ao Euro, devido a uma grande «responsabilidade» financeira europeia, podia colocar em causa o sistema. No último trimestre do ano, começou a fazer-se sentir no preço do petróleo a decisão de deixar de comprar petróleo, tomada pelos EUA, os quais, após uma campanha de substituição dos combustíveis fósseis por energias limpas, se decidiram pela auto-suficiência. A [pouca] pressão da [fraca] procura passou portanto para o Euro, que encetou uma trajectória descentente: para comprar um euro eram necessários cerca de $1,40 há três meses atrás, bastando agora pouco mais de $1,10.

No entanto, será que os tecnocratas alemães, à frente do BCE, se apercebem das potencialidades do jogo que, para já, estão a perder? Com o enclausuramento americano intra-fronteiriço (a factura energética era uma importante fatia da sua Balança de Pagamentos), a massa monetária real (não especulativa) em circulação global passou a ter origem apenas europeia e extremo-asiática. Fará sentido continuar a pagar petróleo em dólares, se estes se auto-excluiram? Se os americanos não compram petróleo, que vão cozer os dólares com batatinhas. Talvez a ideia do Kadafi [que, eventualmente, o levou à morte] seja plausível, de retorno a um padrão ouro (uma moeda «certificada») para as aquisições internacionais de petróleo... No entanto, a monarquia saudita [cujo petróleo aflora a custos de produção de $5] parece ter sido cooptada pelos EUA, inviabilizando a eficácia da OPEP. As tensões monetárias parecem ser denunciadas pela cotação do ouro, a qual, desde o início do ano, tem estado a crescer sustentadamente. 2008 -> 2015, notam-se algumas semelhanças, nos padrões gráficos, no par Euro/Dólar, no Ouro e no Petróleo (infelizmente ainda expressos em dólares, triangulando e confundindo os dados). Foi o fim daquele que ficará conhecido, na história da Economia, como um ciclo de sete anos. Sete e sete são quatorze e mais sete vinte e um... Será por isso que os presidentes franceses cumprem um septenato? O que reserverá o futuro?

Mas voltando ao artigo: «capitalismo inclusivo»? O que é isso? Isso vende-se? O capital não tem desejos afetivos... Quer lá saber de outra coisa a não ser a sua própria reprodução. Se, em 1944, quando os Estados Unidos deram a primeira machadada na credibilidade e sustentabilidade do sistema financeiro mundial, tinham peso e legitimidade para o fazer, ao falarem das fortes expectativas de crescimento geradas pela reconstrução europeia; o mesmo não se aplica já sete décadas depois, em que a expectativa se reduz apenas a um lento atrofio económico, gerado pelo refluxo financeiro.

Face à escassez monetária, o grande desafio para as pessoas consiste, para já, à falta de uma nova Ordem mundial, em desenvolver formas não monetárias de cooperação e de criação de valor, fazendo apelo à imaginação e à criatividade, recorrendo, entre outros, às potencialidades das novas tecnologias de comunicação em rede.

sábado, 24 de janeiro de 2015

Parente pobre

Face aos números apresentados para a emissão de dívida 2015 pela UEMOA, segundo a France Presse, confirmam-se os receios que tinha enunciado, face à chegada discreta do Presidente, finda a cimeira. Como se adivinhava, para quem consegue ler nas entrelinhas, a dívida foi consolidada, com a contracção da emissão face ao ano anterior, em cerca de 22,4%.

Publico aqui uma tabela, na qual, aos números publicados, associei a população dos países grosso modo (com um incremento quando as estatísticas demográficas são antigas), isto tudo para fazer um cálculo per capita da emissão, que vamos considerar uma aproximação da massa monetária.


O que se constata é que a Guiné-Bissau, um país litoral, parece ter uma economia muito mais robusta que os países do interior. Apenas para comparação, o topo da lista vai para a Costa do Marfim, a menina dos olhos de Paris, apresentando uma emissão per capita três vezes maior e o Senegal o dobro.

O Mali, sendo um país interior, surge com uma emissão muito superior ao seu peso económico, ao nível do Senegal, o que se poderia justificar pelas despesas de «reconciliação» e de gestão da crise... [enfim, uma prioridade de Paris]. No entanto, o argumento também se poderia aplicar, com toda a propriedade, à Guiné-Bissau, que sofreu um bloqueio e já foi prejudicada em anos anteriores por essa razão.

O eixo de solidariedade da União, pelos vistos, não é suficiente para defender os interesses da Guiné-Bissau, que parece estar a ser sub-valorizada no contexto sub-regional: e a ser penalizada na sua verdadeira dimensão económica e estratégica. Suficiente para dar que pensar...

Não estará a Guiné-Bissau a ser um «financiador líquido» da UEMOA?

PS Questões monetárias foram igualmente recentemente discutidas em Davos, o que motivou a partilha de um interessante artigo por parte de Ramos Horta. Estou a preparar um breve comentário sobre o assunto, a uma escala global.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Apelo do Didinho

O Bom senso recomenda COMPROMISSO e RESPONSABILIDADE a TODOS! Não se deve tentar enganar os próprios guineenses, nem tão pouco a Comunidade Internacional, os Parceiros, os Doadores e os Investidores, de que está tudo bem, até Março, altura da realização da Mesa Redonda de Doadores, e que depois disso, pode continuar a "luta interna" no país...

Não, a Guiné-Bissau dispensa essas "lutas internas"; os guineenses dispensam essas "lutas internas" e a Comunidade Internacional também dispensa essas "internas"!

Chega, meus irmãos!

Foi criado um Executivo de Consenso Parlamentar, designado de Governo Inclusivo, à margem do estabelecido na Constituição da República, tendo em conta os resultados eleitorais de uma maioria absoluta conseguida pelo PAIGC.

Temos três Órgãos de Soberania de âmbito político, se assim podemos dizer, dos quatro que sustentam o Poder do Estado, representados por dirigentes do PAIGC partido vencedor das eleições legislativas e partido que apoiou a candidatura do vencedor das eleições Presidenciais, ou seja: O Presidente da República é um alto dirigente do PAIGC bem como quem o substitui em primeira instância, concretamente, o Presidente da Assembleia Nacional Popular.

Presidente da Assembleia Nacional Popular que, também é alto dirigente do PAIGC e segunda figura na hierarquia do Estado, depois do Presidente da República.

Um Primeiro-Ministro que é o Presidente do PAIGC ou seja o Partido vencedor das eleições legislativas e que apoiou o candidato e vencedor das eleições para Presidente da República.

Posto tudo isto, devemos questionar:

O que está a promover "lutas internas" entre as autoridades políticas; entre as instituições do poder político na Guiné-Bissau, quando nem sequer há oposição no Parlamento;

Quando nem sequer há interferência das Forças Armadas nos assuntos de ordem política do Estado;
 

Quando a Comunidade Internacional e os Parceiros de Desenvolvimento têm mostrado vontade e interesse em ajudar o país;

Quando os guineenses e os amigos da Guiné-Bissau começam a ganhar entusiasmo e confiança para, cada um à sua maneira, mas num "PROJECTO COMUM" de GUINENDADI, responderem às solicitações que as necessidades de toda a ordem dão a conhecer, naturalmente...

Quando ninguém vê razões para nenhuma "luta interna"... penso eu que, as autoridades guineenses devem rever os juramentos feitos aquando da tomada de posse, bem como, as promessas e os manifestos eleitorais apresentados aos eleitores guineenses.

Haja humildade suficiente, para que, todos se respeitem mutuamente e que a convivência institucional seja motivada pela razão de servir uma Pátria, um Povo e as populações, independentemente das suas origens e motivações, que escolheram o nosso país, para viver e trabalhar!

Não podemos continuar a desperdiçar oportunidades de desenvolvimento, quando não há conflito armado no país.
 

Não podemos continuar a incentivar conflitos institucionais, em nome de interesses pessoais.
 

Não devemos continuar a pensar que, os "outros" têm OBRIGAÇÕES connosco e, por isso, façamos o mal que fizermos, estarão eternamente disponíveis e prontos a satisfazer os nossos caprichos...

Façam o favor de se entenderem, conversando, na base do respeito, da tolerância e tendo em conta, o juramento de todos serem fiéis servidores do ESTADO e do POVO.

Positiva e construtivamente,


Didinho 23.01.2015

Mensagem de agradecimento

Este blog acaba de registar como comentário, da parte do Director do INEP, a seguinte mensagem, que transcrevo:

Caro José

Muito me honra e ao INEP a oferta de tamanha preciosidade que acaba de fazer. Quero agradecer-te o gesto e a magnanimidade, pois só uma pessoa de vistas largas como as que possuis é capaz de compreender a importância de que se reveste uma obra destas. É pois com todo o prazer e honra que aceito receber o livro, em nome da Biblioteca Pública do INEP.

Grato

Leopoldo Amado

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Transparência dos inocentes?

Talvez Sua Excelência o Presidente da República José Mário Vaz, em abono da transparência que tem defendido, pudesse explicar aos guineenses o seu entendimento da declaração adoptada na cimeira de Cotonou, que se propõe «preservar o nível de endividamento assegurando a qualidade e a sustentabilidade da dívida pública no seio da UEMOA».

[esse critério «de consolidação» parece suficientemente vago, mas decerto servirá para prejudicar a Guiné-Bissau, cuja percepção de «sustentabilidade» é tendencialmente nula).

A Guiné-Bissau é pequena demais para influenciar as políticas da união monetária regional. No entanto, no contexto da desvalorização do Euro face ao Dólar, e do carácter financeiro pós-colonial e desactualizado do «pacto» que deu origem à indexação a essa moeda (herdada do franco) da massa monetária da UEMOA, é questionável se fará algum sentido preservar essa ligação via Banco de França, sobretudo agora que parece que este foi tomado de assalto por germanófilos... (os quais, como se sabe, são completamente avessos à criação de moeda).

Será o silêncio da Presidência justificado por não ter conseguido obter os financiamentos que desejava, nas reuniões em que Sua Excelência foi recebida? Não haverá sobreposição de competências, em relação à politica do Primeiro-Ministro, quando fala em «projectos de desenvolvimento»? Ou cada um desenvolve os seus? Não haverão sinergias, ou (para utilizar um vocabulário mais adequado aos destinatários) economias de escala, a aproveitar, entre esses projectos?

Se, por acaso, se viesse a revelar interessante em termos negociais, para o País, equacionar a presença na União Monetária (não na económica, claro!), como poderiam ser tomadas as medidas necessárias, se os governantes andam ostensivamente de candeias às avessas e não se entendem? Quem cuida dos interesses da Guiné-Bissau?

Ver O Democrata

42 anos de eterna saudade

Gostaria de, num gesto simbólico, oferecer ao INEP uma raridade bibliográfica que consegui finalmente adquirir, para esse efeito, depois de muito regatear com o alfarrabista. Trata-se eventualmente do primeiro trabalho de investigação científica de um guineense a ser publicado em letra de imprensa.

Para a sua escassez e eventual desconhecimento, terá decerto contribuído o facto de esta edição ter sido mandada recolher de todas as bibliotecas públicas, em Portugal, desde que o seu autor passou a ser rotulado de subversivo e persona non grata. Estou a falar, evidentemente, de Amílcar Lopes Cabral.

O livro de que falo, publicado em 1958 pela Junta de Investigações do Ultramar, na colecção Estudos, Ensaios e Documentos, intitula-se «Acerca de uma classificação fitossanitária do armazenamento» e apresenta um prefácio de Baeta Neves, com o elogio à oportunidade e mérito do seu autor.

Agradeço ao meu muito amado irmão Leopoldo, agora à frente dos destinos da instituição, que me informe como posso entregar a minha dádiva, ou promova a sua recolha e transporte para Bissau, onde espero possa servir como pequeno contributo para a refundação dos seus arquivos, tão ofendidos durante a guerra de 1998-99.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

O riso da rosa

O ignóbil atentado do Charlie-Hebdo fez-me lembrar o obscurantismo terminal da Idade Média retratado por Humberto Eco n'O Nome da Rosa: a químio-terapia social radical recomendada pela escolástica tardia incluía a repressão do riso, vindo a culminar, mais tarde, com as barbaridades praticadas pela Inquisição (o que terá levado a um discreto mea culpa do Papa na sua recente alocução sobre o assunto, que os IBD publicaram). Tempo dos erros do magister dixit, sem lugar para a experimentação ou a ciência, bem patentes, por exemplo, nos erros crassos da geografia de Ptolomeu (mal se saía do Mediterrâneo).

O filme passa-se no ano de 1327, dois anos depois da morte de Dom Dinis, em Santarém. El Rei, casado com a mulher perfeita, uma «cátara», tentou introduzir uma síntese revolucionária com o culto do Espírito Santo, mas a reacção foi forte, apoiando-se nos desencontros filiais que marcaram o fim do seu reinado para lhe prejudicar a herança, a qual, no entanto, como símbolo e mito que era, lhe sobreviveu e se incrustou de forma indelével na identidade cultural nacional, regra geral como contra-poder.

No imaginário feminino, a Rainha Santa encarna a imagem branca, diurna, que a Igreja se esfalfou (apesar dos avisos dos Padres da Igreja) em promover como adorável modelo: a «virgem». No entanto, talvez por oposição, há que figurar o seu esposo na pintura... D. Dinis fez tudo quando quis, segundo se diz. É inconcebível a descontextualização do papel da mulher, associado à privação da sua sexualidade (uma verdadeira excisão social) criando um padrão intangível, que faz de todas as mulheres, por comparação com Maria, verdadeiras prostitutas.

Sem escape para a tentação terrena, a dialéctica católica acabou por empurrar Maria Madalena para o diabólico e muito secundário papel de contra-exemplo (contrariando as evidências do ensinamento do seu Mestre), o que viria a servir de guião a Dan Brown, para dar continuidade ao trabalho de Eco, fazendo cócegas num dos calcanhares de Aquiles do edifício da fé romana. Engraçado é que D. Dinis foi velado na Capela de Maria Madalena (embora esta pertencesse à Igreja de Santa Maria - ambas são, de qualquer forma, Maria...). É que os templários portugueses, que D. Dinis acabara de reconverter em Ordem de Cristo, tinham precisamente por madrinha Maria Madalena.

O bem, o bem, o bem... Esse discurso «teológico» formal da Igreja deu lugar a inúmeras críticas de hipocrisia e a imensas «reformas». Para além dos «amores» com Maria Madalena, muitos foram os episódios apagados (ou muito adulterados) da memória católica, por dogmas mais ou menos oportunos. É que era preciso vulgarizar e colocar os textos sagrados ao alcance do maior número... Embora, como católico, reconheça a importância civilizacional do dogma, para evitar precisamente retrocessos (os católicos andaram dois séculos a discutir o sexo dos anjos; chegando à conclusão de que, a certa altura, é necessário colocar um ponto final nas questões) ou derivas como aquelas que estão a acontecer no mundo muçulmano (o qual não é de forma alguma homogéneo, com várias identidades, sendo as mais visíveis a sunita e a chiita, mas que, por não ter o equivalente de um Papa, não é capaz de fixar um corpo dogmático estável, sendo por isso muito vulnerável às prédicas alucinadas, fundamentalistas e anti-sociais), não me impeço de pensar, de questionar, ou mesmo de elaborar opiniões.

E estou-me a lembrar de um desses episódios, que evidencia pormenores muito desencontrados dos apóstolos... o que teria levado a uma supressão selectiva. Referir-me-ei portanto apenas à versão canónica de Marcos, que nos conta a chegada de Cristo a Jerusalém (onde acaba por dar umas valentes biqueiradas nas bancas dos vendilhões que usurpavam a Casa do Senhor): ao ver uma figueira, o Mestre faz um desvio para passar por ela, dizendo que tinha fome, o que intriga bastante os Seus seguidores, pois não estavam em tempo de figos. Depois de todos terem chegado, o Mestre estendeu a mão... e, como era de esperar, não colheu figo nenhum, pois os não havia. Então, Jesus virou-se para a árvore e disse: «Nunca mais homem coma fruto teu». Mais tarde, à saída de Jerusalém, Pedro vira-se para o Mestre e aponta «Reparai, Mestre, a figueira que amaldiçoasteis secou!» Se a figueira fosse estéril, ainda se compreendia... Ora era normal que não desse frutos fora de tempo. Jesus Cristo era de uma maldade gratuita? Ou estaria o Mestre apenas a insinuar (seria só para os mais espertos?) que o «mal» também é um princípio «criativo» a considerar? Há, no mínimo, que relativizar. «E o Senhor louvou ao criado desonesto, pois os filhos da luz devem ser tão [ou mais] avisados quanto os filhos das trevas»...

O filme de Eco retrata precisamente a repressão de uma heresia, a qual, embora associada a ideias decerto generosas, se arriscava a colocar em risco a sociedade da época, concebida como comunidade dos crentes (vivos e mortos). Em Santarém, o Santíssimo Milagre foi uma magnífica obra dos franciscanos para ajudar os habitantes de Santarém a consolidar a sua fé na Eucaristia (precisamente o pomo da discórdia, ou seja, aquilo que os «hereges» negavam, estar Cristo naquele «bocadinho de pão» a que chamam hóstia)...

Engraçado é a constatação de que as derivas fundamentalistas, tanto cristãs como muçulmanas, tenham tomado por alvo as mulheres e o riso. Um bom treino para a liberdade mental é a capacidade de nos rirmos de nós próprios, de aceitarmos o ridículo (a Igreja tolerou sempre o Carnaval, muito a contra-gosto, como válvula de escape). Um dos elementos do culto legado por D. Dinis, de que ainda sobram algumas sombras na Festa dos Tabuleiros em Tomar, ou nos Açores, é igualmente a capacidade de subversão. Durante um dia, reinava o idiota da aldeia, ou uma criança, que era coroado por um dia, com pompa e circunstância, como imperador do Espírito Santo, e todos, sem excepção, lhe tinham de obedecer, por mais inconcebível ou ridícula que fosse a ordem. Há alguns (infelizmente relativamente vagos) relatos de tal culto se praticar nas carreiras dos Descobrimentos.

Estou a imaginar a Raínha Santa Isabel (tal como sua parente húngara, conhecida pelo Milagre das Rosas, um conhecido símbolo alquímico), tentando ocultar do seu marido, entre os folhos da saia, o Charlie-Hebdo: «São (só) risos, Senhor!»

PS A Igreja não se livra do fantasma da repressão albigense... Coincidência (ou não), foi no dia de Madalena que se deu o episódio de Béziers, durante o qual um dos guerreiros teria perguntado ao legado papal, antes do assalto (que seria fulminante), como fazer para distinguir quem era ou não herege, ao que este teria respondido: «Matem-nos a todos, Deus escolherá os seus», o que foi «religiosamente» cumprido, não escapando sequer as mulheres e crianças que se haviam refugiado na Catedral. Uma nota ainda, para os mais atentos, a quem não escapará a «fuga» à linha editorial deste blog, que se ocupa essencialmente de assuntos da Guiné-Bissau: foi uma certa irritação, contra a atitude do Presidente do Senegal em proibir a circulação do Charlie-Hebdo (bem como de certas pessoas que parecem querer branquear o atentado), a que não será decerto alheia a circunstância de ter bebido uns valentes copos de tinto (pois, como mostrou a Raínha, nem só de pão vive o homem [e a mulher]: também precisam de rosas, de risos e de gozo): talvez por isso o texto esteja denso, aparentemente confuso e com pouco nexo, mas o assunto é complexo (e não estou a falar de sexo, contrariamente ao que algumas mentes menos corteses possam pensar). Queiram perdoar, mas enfim: jorrou!

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Choque

Estou de luto pelo meu desenhador francês de cartoons preferido. Habituei-me, ao longo dos anos, a acompanhá-lo no Nouvel Observateur, cheguei a comprar um ou outro número do Charlie-Hebdo (ainda conservo pelo menos um exemplar) em deslocações a Paris. Depois de Reiser, de quem também era admirador incondicional, foi a crítica mordaz de Wolinski, a sua sátira solta e corrosiva (da qual se desprendia uma saudável libertinagem em que os franceses são mestres), que durante muito tempo me reconciliou com a França. Para além do seu delicioso cartoon semanal no Nouvel Obs, ilustrava por vezes grandes reportagens, ou oferecia umas deliciosas pranchas a mais nalgum suplemento...

Em meu nome pessoal posso dizer que, sentindo a humilhação do mundo (e do muçulmano em particular) com a imposição da nova ordem mundial pós queda do muro, compreendi, na manhã de 11 de Setembro, as razões identitárias na origem do ataque ao símbolo. Hoje, sinto-me chocado. Wolinski era um símbolo para mim. Se a 11 de Setembro conseguia identificar-me com os executantes, hoje identifico-me com a vítima. Um ataque ad hominem contra um artista? O terrorismo tem destas coisas. Ganha quando nos consegue despertar uma raiva cega. Recuso deixar-me levar pela fúria.

Este ataque é especialmente grave pelo alvo que encarna, que é evidentemente a liberdade no mundo ocidental, pretendendo lançar um choque de civilizações. Resta saber se foi apenas obra de um par de alucinados, ou de alguma maléfica organização criada com esse mesmo fim. Resta-nos rezar para que os irmãos muçulmanos transviados em intolerâncias desmerecedoras dos ensinamentos do Profeta (as quais não podemos extrapolar para o conjunto da comunidade dos crentes), retornem ao caminho da razão e não mais pratiquem barbaridades em Seu nome.

De qualquer forma, tinha deixado aqui neste blog, há pouco mais de um mês, a minha opinião de que o risco de atentados tinha subido exponencialmente nos últimos tempos... depois do lançamento da operação dunas.

O direito ao bom nome

A Guiné-Bissau, com o seu glorioso passado de luta anti-colonial, tem direito ao seu bom nome, a ser tratada com respeito: se houve vitórias africanas realmente assertivas, essas foram decerto, no campo militar, Amílcar Cabral, no campo humano, Nelson Mandela, e, no campo político, Tomás Sankara.

A importância da Guiné-Bissau não pode ser medida ao «quilómetro quadrado». Basta considerar a materialidade da sua comunidade virtual de opinião, entre redes sociais e de blogues, para constatar que está muito à frente. Uma breve pesquisa a outros países da sub-região, de expressão francesa e inglesa, mostra que as suas comunidades virtuais estão ainda num estado muito incipiente e embrionário, ao nível de comentários alojados nalguns jornais com edição electrónica (ou seja, como já estavam os guineenses há mais de uma década, e hoje o progresso é muito rápido)!

[Isso traduz o efeito de uma geração formada em liberdade e esperança, mas que, infelizmente, não conseguiu reproduzir-se ou consolidar o impulso vital vindo de Cabral, sangrando a Nação os seus melhores quadros em benefício de uma diáspora de ouro, deixando o país à deriva em termos de educação e de futuro, como alertava Miguel de Barros há pouco tempo, em Lisboa. Não se estará perante um ponto de não retorno?]

Tal como os países, como identidade colectiva, têm direito ao bom nome (independentemente de se apontarem eventuais erros), não devendo ser ofendidos por terceiros (ainda para mais quando se dizem irmãos) também para os cidadãos e as cidadãs, como identidade singular, esse direito é inalienável, sendo altamente recomendável que seja respeitado para uma vida social saudável. Está na hora da guineendade sair da calabassa. De respeitar os nossos tempos de convivência, valorizando e consolidando a identidade comum. De semear o amor e não o ódio. Apostar naquilo que une e identifica, como os valores da diversidade e da tolerância. De fazer algo firme e duradouro pela terra.

Nô djunta mon.