sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Formulação desadequada

Por despacho, o PGR assume a iniciativa da acção penal relativamente ao documento BAO vazado.

Não fundamenta, como expectável, sua decisão, incorre em imprecisão quando diz que "desembolsou", no passado, seis bilhões (também aqui, Senhor Procurador, foi falta de atenção em relação ao original, onde está correcto, seis mil milhões, em português não existe bilhão), quando, de facto (senhor Procurador, facto é diferente de 👔 escreve-se com C, segundo as regras do AO90), o Ministro se propõe desembolsar, no futuro, ao longo de cinco anos, a partir de Janeiro do ano que vem. É que essa forma errónea de apresentação tem obviamente custos para a credibilidade do processo que pretende encetar, abrindo caminho a esclarecimentos contrários passíveis de prejudicar o seu bom andamento. 

Há muitas questões para esclarecer, decerto uma leitura atenta do documento pode ajudar: começa por se referir ao reconhecimento de dívidas. Mas a que propósito, os elementos listados em anexo, para além das "instituições do Estado" com quinhentos milhões, são considerados credores do Estado? Na altura do primeiro episódio desta novela, dizia-se que os bancos tinham garantias, hipotecas, que 90% seriam pagos pelos próprios devedores. Quando surge na lista, por exemplo, Hotel Império e sabemos que continua a operar, torna-se complicado exigir ao contribuinte que pague essa "dívida" sem diligências eficazes de cobrança. Seria interessante confrontar a percentagem prevista de recuperação de crédito? Zero %?

Ficar mal no retrato

O Acordo Ortográfico tem "paradoxos": uma importante fonte é comerem os cês a granel; quando um pacto de facto vira um pato de fato, temos um problema; até o inocente espectador de uma tourada pode virar espetador. 

Ora uma coisa é irretractável "que não pode ser revogado ou anulado", outra é irretratável "que não pode ser retratado ou voltar a ser tratado". A palavra mais importante, em termos de confiança bancária, no documento (em abono da verdade, este deveria esclarecer, logo de início, ser feito "a pedido do interessado") que supostamente obriga o Ministério das Finanças, a favor de um banco cujo presidente está preso em Portugal (há 7 anos este blog dedicou-lhe alguns mimos), tem gralha e trunca todo o efeito pretendido, ou seja, salvar o BAO da falência. Ó Diogo, tens de carregar no C quando diktares irretraccckkktável. Ou prefere irrevogável. Mas olha que quando não basta a garantia do Estado e é preciso acrescentar-lhe esse género de adjectivos, é óbvio que é para desconfiar, como todo guineense sabe, na sua gireza.

PS Acrescente-se que o acto de "acrescer acessórios" traduz igualmente uma radical e curiosa desadaptação terminológica, para o ramo financeiro e bancário. 

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Somos todos filhos de Deus

Moisés, depois de alguns encontros com Alá no Monte Sinai, disse ao Criador: 

_“Senhor, oiço Tua voz, mas não Te vejo, e arde em mim a curiosidade de conhecer Teu rosto, Tua forma, Teu aspeto, de conhecer, enfim, qualquer coisa de Ti. Deixa que Teu servo Te veja, Senhor!”

Deus respondeu-lhe que aquele pedido era impossível de satisfazer. Moisés insistia, queria saber se era branco ou preto, homem ou mulher. A resposta veio breve: não era homem nem mulher nem branco nem preto e não tinha filhos. Moisés estava confuso, mesmo decepcionado. Então Alá deu a Moisés três ovos e mandou a Moisés que regressasse para junto do seu povo e que mais tarde lhe daria a explicação daquilo que tanto o surpreendera. Moisés regressou à sua gente, um dos filhos quis brincar com um dos ovos, este partiu-se, tanto chorou que acabou por receber o segundo, e depois o terceiro, ambos se partiram. Quando Moisés voltou ao Monte Sinai, questionado sobre o destino que dera aos ovos, lamentou-se, todos tinham sido partidos pelo mais novo dos seus filhos. 

_“Ora aí tens, Moisés, admiraste-te por não ter filhos e agora já te posso explicar a razão de os não ter. Se tu consentiste aos teus filhos que partissem os ovos que te dei, bem poderia acontecer que deixasse aos meus, se os tivesse, que partissem a abóboda do Céu. Não, Moisés, não tenho filhos à maneira dos homens, mas são meus filhos todos os seres que criei”.

Lindíssimo conto mandinga intitulado “Por que razão Deus não tem filhos?”, extraído do blog do Luís Graça, o qual me parece deixar Jesus numa posição teológica delicada. Note-se que a ambiguidade se mantem, apesar do aparente dilema.