Obrigado ao meu grande amigo Vasco Rosa, em «Observador», Agosto de 2022
Parque Nacional Marinho
Dando conta dos trabalhos desenvolvidos na parte mais meridional do arquipélago guineense dos Bijagós pelo «generoso» (p. 16) financiamento da Fondation MAVA, criada em 1994 pelo ornitólogo, conservacionista e filantropo suíço Hans Lukas Hoffmann (1923-2016) e extinta este ano 2022 por decisão dos herdeiros, este surpreendente livro reúne colaboração duma vintena de cientistas, sete dos quais — Daniel Lopes, Jorge Palmeirim, Luís Catarino, Manuel Sampaio, Mohamed Henriques, Rita Patrício e Rui Rebelo — vinculados a instituições académicas portuguesas, e ainda de duas bolseiras da FCT, Ana Rainho e Edna Correia. O denominado Parque Nacional Marinho de João Vieira e Poilão, de que uma ínfima parte é de terras (seis ilhas e ilhéus, alguns bancos de areia) permanentemente emersas, estende-se por 49 500 hectares, em águas em geral muito pouco profundas, de -5 até -15 m, com alguns canais que duplicam essa profundidade e recifes rochosos de modesta extensão. As ilhas são de pequena dimensão, relevo suave, elevação mínima e orladas de extensas praias de areia de declive pouco acentuado e densos palmares mistos, aqui e ali já atingidas por nítida erosão marinha que se acentuou nas duas últimas décadas (p. 19). O interior é preenchido por «savanas arborizadas de pequeno porte» (p. 42). Mangais ocupam áreas irrelevantes (p. 51). Tradicionalmente desabitadas, as ilhas do grupo de João Vieira e Poilão tiveram a sua toponímia registada pela primeira vez em 1594, por André Álvares de Almada, um português da ilha cabo-verdiana de Santiago e autor dum famoso tratado sobre a costa ocidental africana. A descoberta, em 1990, de que Poilão recebia uma «colossal agregação de tartarugas marinhas reprodutoras» — «cinco das sete espécies existentes são encontradas no mar da Guiné-Bissau» (p. 117) — colocou de imediato aquele sector do arquipélago na agenda do conservadorismo de biodiversidade. No ano seguinte foi instituída a Reserva da Biosfera Bolama Bijagós. Em 1993, a «cooperação suíça viria a garantir boa parte dos meios financeiros que sustentaram o processo que levou à criação do Parque», em Agosto de 2000 (MAVA/FIBA concedeu-lhe 500 mil francos suíços para o triénio 2002-4). A partir de 2005, a fiscalização marítima pôde dispor de duas embarcações com instrumentos de localização GPS, enquanto a vigilância da captura clandestina dos apreciados papagaios-cinzentos (Psittacus erythacus) e do consumo local de tartarugas marinhas foi um tanto implementada na terra firme, depois de anos de negligência. O cadastro botânico e zoológico das ilhas foi igualmente tardio (2016).
As ilhas do Parque Nacional são propriedade tradicional de quatro das dezanove tabancas do sul da ilha de Canhabaque — que ali cultivam arroz de sequeiro, e um pouco de mandioca e abóbora, em regime de agricultura itinerante — e, por isso, receberam como contrapartidas a construção de escolas e casas para farmácia comunitária, comércio, alojamento ocasional e comunicações rádio VHF. Outros apoios vieram mais tarde, da parte da UNICEF, mas sobretudo proporcionados por instituições com preocupações ambientalistas, como o Banco Mundial e a União Europeia (projecto «Gestão da Biodiversidade e da Zona Costeira»), o United States Fish and Wildlife Service, o World Parrot Trust e, como vimos, a fundação MAVA, com programas dedicados às aves aquáticas e às tartarugas. E com toda a razão: por ano há, só no ilhéu de Poilão, algo como entre 4 mil e 40 mil ninhos de tartaruga-verde (p. 117)... e a tendência é de crescimento (fig. 4, p. 122).
Este livro é por isso, de alguma forma, o resultado desse enorme investimento científico multidisciplinar e de cooperação internacional, com resultados apresentados em 2018 (v. ©, p. 6). Bem documentado fotograficamente, com belas imagens dos ambientes florestais e lagunares (p. 90, entre outras), permite perceber num simples folhear a rica biodiversidade daqueles recantos da Guiné-Bissau, nos diferentes domínios abordados, desde a flora vascular em savana arborizada, com 212 espécies registadas — admiráveis as flores da liana Strophanthus sarmentosus DC (p. 62)! —, às aves migrantes, como o abelharuco-de-garganta-branca Merops albicollis, que ali passa na época seca (p. 201), ou residentes, como o muito cobiçado papagaio-cinzento, «um tesouro das florestas bijagós» (p. 248). O modelo de descrição das espécies varia consoante os autores, e ainda que essa falta de unidade estilística entre os capítulos possa ser vista como um lapso do ofício editorial, a informação é em geral bastante rica quanto a classificação, origem, população, hábitos e distribuição geográfica.
Secções finais intituladas «Discussão» fazem uma síntese, quantificam o grau de risco de extinção das espécies e apontam pistas, por exemplo, para a «utilização moderada e sustentável dos recursos naturais nas ilhas do Parque» (p. 77), atendendo aos meios e modos das populações vizinhas e alertando para os malefícios de expansão de plantas exóticas potencialmente invasoras. O pequeno cacho-caldeirão (Ploceus cucullatus), «residente, presente e nidificante em todas as ilhas» (p. 234), é visto como uma pragapelos agricultores bijagós, por gostar de bicar nos seus arrozais... Em contrapartida, o devastador bico-carmin (Quelea quelea), que vive em colónias de milhões, jamais lhes causará prejuízo, pois prefere ambientes secos e áridos e até ali praticamente não vai.
O eventual risco dum turismo de natureza além da conta não é por enquanto considerado, muito embora as melhores noites de desova, com mais de 1000 tartarugas subindo as praias do Poilão, sejam «um espectáculo fabuloso» (p. 119), e os bird watchers nas orlas e florestas de todo o Parque Nacional tenham muito com que se entreter (é também «terreno fértil para quem procura aves perdidas ou achados novos», p. 240). Tartarugas marinhas, adultas ou ainda juvenis, porém, correm sérios riscos de serem capturadas por pescadores do Senegal e da Guiné-Conacri activos na região (p. 135), e só na última década a «captura sistemática» por gente de Canhabaque foi bastante reduzida.
Registos de fotogrametria aérea feitos em 2016 antecipam que no tão preferido mas bastante pequeno ilhéu de Poilão, a área de desova será reduzida — optimisticamente?!... — em 43 % até ao fim do século. A avifauna do Parque Nacional Marinho de João Vieira e Poilão parece ser uma parte menos estudada (e também muito pouco fotografada, em proporção — e é grande pena!), apesar das 164 espécies identificadas («um número muito apreciável», p. 240). Com dados que remontam quase todos às campanhas de observação e registo de 2015, durante as quais as ilhas de Cavalos e do Meio não foram abordadas consistentemente, não há por isso estatísticas sobre como a presença dessas espécies residentes ou migratórias evoluiu desde então — 35 pelicanos-cinzentos, 305 maçaricos-galegos e 400 fuselos (Limosa lapponica) foram vistos no Parque naquele ano; v. pp. 164, 172, 176. Neste admirável mundo em franca expansão, em que certos avistamentos são recebidos como privilégios de toda uma vida, o dos 400 garajaus-de-bico-laranja poisados numa única praia de João Vieira em Março de 2014 terá sido, pelo menos, inesquecível. Nada de menos se poderá dizer da visão de papagaios-de-timneh, em extinção, percorrendo «corredores de passagem regulares» (p. 257). Os chamamentos e os cantos dos melros-metálicos-esplêndidos (Lamprotornis splendidus) «acompanham em permanência os visitantes das florestas das maiores ilhas do Parque, sendo mesmo o elemento predominante do ambiente sonoro florestal em João Vieira», lê-se à p. 224. Os tordos-de-cabeça-nevada (Cossypha niveicapilla) revelam-se como «os melhores pequenos cantores do PNMJVP» (p. 226).
Garajaus e gaivinas são as aves marinhas mais abundantes no arquipélago, e «um dos maiores valores ornitológigos do Parque» (p. 242), pelo que a criação de condições para a sua nidificação local preocupa os cientistas. Trezentos antipáticos abutres-das-palmeiras instalam-se no Parque na época das chuvas em busca de tartarugas infantis para a sua dieta variada, que inclui serpentes, caranguejos, peixes sortidos e chabéu, o fruto da palmeira que apreciam particularmente e é quase metade do que comem. Há muito menos variedade de mamíferos terrestres neste Parque do que no arquipélago como um todo, é a conclusão preliminar duma inventariação que os investigadores reconhecem como recente e tardia, e sem aprofundamento dos habitats particulares ou das variações sazonais na presença e abundância de espécies mais móveis, como alguns morcegos. Mas as suas interacções específicas com os restantes grupos de animais e plantas baseiam-se em ecossistemas com estrutura e funcionamento únicos, «de grande valor científico e natural» (p. 288), que importa conhecer e preservar. Os mamíferos marinhos da Guiné-Bissau são também muito pouco conhecidos, isto cientificamente falando, pois manatins-africanos (Trichechus senegalensis) são caçados — apesar da proibição, por serem considerados uma espécie vulnerável desde 2015 — com arpão ou gamboa, por causa do valor comercial da sua carne e por partes do seu corpo valorizadas pela medicina tradicional dos bijagós, ou morrem, como os golfinhos, presos em redes de pesca artesanal, por acidente ou pretenso acidente. Neste caso, os autores sugerem a criação de «áreas marinhas protegidas funcionais, onde a pesca seja cuidadosamente regulamentada e controlada» (p. 302).
Nos Bijagós coexistem 172 espécies marinhas e estuarinas de peixes, 74 das quais capturadas por pescadores locais ou desportivos na área do Parque Nacional Marinho. Raias, quimeras e tubarões têm sofrido declínios populacionais acentuados, pois a diminuição drástica dos recursos piscícolas em toda a África Ocidental tem criado grande pressão sobre o arquipélago, com a chegada de pescadores estrangeiros com o fito de capturarem tubarões e venderem as suas célebres barbatanas no mercado asiático, por exemplo. Pesca de subsistência ou comercial de pequena escala — com redes de cerco ou com cana (fotos pp. 308-9 e 315) — foi consentida e regulamentada com o objectivo de conservar stocks comerciais e deixar crescer até grandes dimensões alguns peixes de referência, ao mesmo tempo que se interditou o uso de certas redes e a circulação de barcos em zonas de concentração de tartarugas marinhas. Na entrelaçada e fascinante ecologia do mar, peixes predadores como becudas, sareias e cachurretas e aves marinhas como os garajaus e as gaivinas conjugam-se, voluntária ou involuntariamente — com «benefício mútuo» (p. 320) —, no assalto aos grandes cardumes de Sardinella maderensis (o djafal; fig. 6, p. 313) perto da tona da água, espécie classificada como vulnerável a nível mundial, mas «a mais abundante no Parque Nacional Marinho», o que faz deste um lugar «relevante para a sua conservação» (p. 308).
Um retrato antropológico dos bijagós da ilha de Canhabaque (2478 habitantes no censo de 2009) ilustra como o sistema de crenças rege a exploração dos recursos naturais, «contribuindo para a sua conservação» (p. 336). Peixe e carne não entram na dieta quotidiana. «A caça de aves (excluindo os papagaios) é ainda rara, mas tende a aumentar» (p. 344), sobretudo as de maior porte. As quatro ilhas principais do Parque têm um estatuto cultural-religioso muito forte, e hierarquizado, na medida em que o ilhéu de Poilão, considerado sagrado, estava reservado a longas cerimónias de empossamento de régulos e rainhas de tabanca, e a outras menores, implicando o sacrifício ritualizado mas propiciatório de tartarugas. Por negociação com o Parque, para facilitar a monitorização das tartarugas marinhas e o «desenvolvimento do ecoturismo» (p. 348), a última cerimónia importante teve lugar em 2009. Por outro lado, foi concebida em 2014 autorização de pesca comercial na área do Parque aos habitantes das quatro tabancas — seus proprietários por tradição —, o que tem sido sido incrementado (3 canoas Nhominka em 2015, 7 em 2019), comportando abusos dum privilégio antigo por conluio com armadores de Bissau (p. 375). Preferem tainhas, sareias e cachurretas, mantidas em gelo até à capital (p. 354). É também verdade que novas facilidades de transporte entre Canhabaque e as ilhas do Parque tem aumentado a presença humana e a pressão sobre os seus recursos naturais, que crescerá ainda mais se condições de fixação e outras ali forem sendo instaladas, em vez de nos lugares de partida.
A situação geográfica ultraperiférica daquelas ilhas e os esforços recentes de conservação gerados pela criação e gestão do Parque têm sido, por enquanto, uma boa almofada contra impactos sobre os recursos naturais, mas no longo capítulo final, «Ameaças e conservação» (pp. 359-95) — subscrito, entre outros autores, pelos organizadores deste livro —, o cenário paradisíaco, quase idílico, é impiedosamente desmontado peça a peça. Desbravamento e exploração florestal, aumento da presença e sedentarização humana nas ilhas, caça e captura ilegal de animais selvagens, ausência de estatísticas sobre pesca comercial a pescadores desportivos sem licença, «embarcações turísticas pescando ilegalmente em redor de Poilão» (p. 373), lixo marinho localmente produzido ou trazido à costa nos períodos de ventos provenientes do largo. Uma colónia de 20 mil casais de belos garajaus-reais Thalasseus maximus na ilha dos Cavalos terá sido afastada dali por uma população de porcos assilvestrados, colocados ali por mão humana. Alterações no nível do mar submergiram o Banco das Gaivotas, sacudindo dali «grandes colónias» (p. 384) de garajaus e de colhereiros-africanos. Perante isto e após algumas recomendações de «medidas que seriam desejáveis aplicar, em função das ameaças já detectadas», a conclusão é clara, e tem suficiente força de letra para ser lida como um reenvio global: «Os desafios de gestão do PNMJVP afiguram-se imensos. Adivinha-se que o Parque só sobreviverá como espaço privilegiado para a biodiversidade se for adoptada uma estratégia de alguma intransigência na defesa dos seus valores excepcionais. Se a resposta perante as pressões crescentes for a cedência permanente aos valores da exploração comercial, dentro de algumas décadas pouco ou nada restará».