Está toda a gente empenhada em evitar atrocidades. Mas não se pode escamotear o facto de que a «anarquia» político-militar na Guiné-Bissau venceu o primeiro round, adquirindo por esse meio, uma vantagem táctica dificilmente desprezível, facto que inflaccionou claramente os preços (ou pesos) na balança, muito por culpa, diga-se, em abono da verdade, da displicência do aparelho de José Eduardo dos Santos, mesmo se o próprio, coitado, entretido com os seus sonhos de grandeza comprados nos grandes armazéns de Paris, não se apercebeu logo da real dimensão da questão.
Em prol da justiça, temos de fazer um pequeno intervalo: mete pena o pobre Zé Diabo estar a dar assim um tiro no pé, para quem se queria afirmar em África, foi escolher o espelho errado a quem perguntar… Mas há primeiro que fazer o seu elogio: os angolanos podem agradecer a sua grande obra (se bem que um pouco estalinista – tal como a obra do mestre – consistente) de consolidação e unificação nacional. A centralização (democrática, claro) permitiu afirmar Angola como uma potência regional. Isto, mesmo se a riqueza obtida com a venda dos recursos nacionais tem vindo a ser distribuída de uma forma demasiado vertical, não se reflectindo numa melhoria substancial do nível de vida das populações, por exemplo através da construção de infra-estruturas de ensino, de saúde, etc, mas apenas na de uma pequena franja de beneficiados, regra geral actuando de forma prepotente e desadequada ao mercado, ou seja prejudicando as condições para um desempenho eficiente da economia. A sociedade angolana é actualmente presa de grandes contradições, vítima de um modelo mental reactivo, numa ilusão de comprar pelo dinheiro uma indemnização moral do colonialismo, através de uma relação essencialmente perversa com os re-retornados tugas.
Foi sem cuidado, sem grandes preocupações com o futuro, sem grande aparato, quase macaqueando a normalidade, que soldados angolanos chegaram a fazer a guarda da residência do Primeiro-Ministro da Guiné-Bissau. Descubra-se aqui o criminoso: o PM guineense, porque se sentia desprotegido e já estava a ver (aliás, já tinha visto, há um ano…) o que lhe ia acontecer (não deixa de ser um traidor e um provocador, não cabe na cabeça de ninguém ofender assim as suas próprias Forças Armadas - independentemente de quem, legítima ou ilegitimamente, ocupava a chefia no momento); ou a culpa vai direitinha para os irresponsáveis mentores angolanos? que displicentemente ousaram desafiar assim as únicas Forças Armadas que derrotaram o Exército português (sim, decerto não foram eles que o fizeram). A independência da Guiné aconteceu mais de dois anos antes da Angolana!
Pois. Que militar aceitaria de bom grado ver pisar o seu chão por botas estrangeiras, transportando armas não declaradas, arrogando-se a desprezar, do alto da sua inconsciência e incúria perante tão imprudente feito, um chefe da tropa da praça? Os factos são infelizmente sem apelo. Foram, primeiro o Embaixador, depois o Ministro, que se excederam? São apenas «a voz do dono» e o reflexo de uma mentalidade infelizmente prevalecente de arrogância e prepotência. É lamentável. José Eduardo dos Santos perdeu sistematicamente os timings neste processo, por uma insana teimosia e decrépita vaidade: quando se apercebeu de tudo o que tinha a perder e tentou remediar as coisas, já o CEMFAGB tinha sido obrigado a reagir e estava fora de questão um retrocesso…
Sempre de boa fé, como sempre, os guineenses, foi-lhes preciso tempo para se aperceberem das sub-reptícias intenções das autoridades angolanas, consubstanciadas num discurso pseudo-pan-africano, mas sobretudo acautelando obscuros contratos de mineração. Mas, na Guiné, mandam os que lá estão. Em Portugal, isso é traduzido por um ditado popular precedido por «Para cá do Marão…» Para já, parece que todos os elementos da ex-MISSANG adquiriram, por via diplomática, o estatuto de persona non grata permanecendo ilegalmente na Guiné-Bissau, o que não é tão amistoso como o costumam ser os guineenses. JES deve preparar-se para engolir um sapo: tanto quanto já foi dado a perceber, o efectivo a deslocar para o local de evacuação, a acertar, deverá ser escoltado pelas FAGB, obviamente desarmado (e, para não acirrar ainda mais os ânimos, seria de bom tom que evitasse ostentar quaisquer símbolos, divisas ou bandeiras distinguindo a sua origem).
Quanto às ameaças proferidas por Angola, infelizmente, referem-se a instâncias pouco actuais e são dirigidas contra anónimos: vão cair directamente em saco roto. Com o CEMFA anunciada e oportunamente preso, os nomes que se vão destilando são completamente desconhecidos e inimputáveis… O problema não está nas pessoas, está nas atitudes! Neste caso, quem tem mais a perder, não são decerto os guineenses, que não têm nada! Pois se nem sequer têm, convenientemente, pelo menos para já, nomes para assumir o suposto «golpe». Deve ser o primeiro golpe de Estado anónimo da História! Mas nem sequer isso é: parece tratar-se apenas de uma simples clarificação de soberania contra uma agressão disfarçada sob pele de cordeiro: com tanto trabalho de casa por fazer, Angola não tem legitimidade e muito menos moral para andar a varrer a casa dos outros. Faz estranhamente lembrar a invasão senegalesa (apresentada a pretexto de defender a «legitimidade democrática», claro) e de como esta despertou o sentimento nacionalista guineense.
Já o discurso agressivo que a Comunidade Internacional tenta manter só pode agudizar as tensões... E parece manifestamente desadequado, até porque quem tem a faca e o queijo (neste caso o colar e as missangas) nas mãos são os militares guineenses, que não gostaram decerto que os angolanos se viessem pavonear com armas novinhas em folha... que supostamente eram para os guineenses, mas que depois já não queriam dar e pretendiam levar outra vez... com a escalada entretanto ocorrida nas palavras e o «estado de guerra» que a comunidade internacional parece querer impor, está fora de questão entregar os blindados ou os helicópteros sul-africanos. Ficam retidos a título de reparação. Em Portugal há um ditado que talvez sirva para consolar Angola: «Perdidos os anéis, ficaram os dedos». E não serão necessários formadores angolanos para o equipamento doado: na Guiné há gente qualificada para isso; no fim da guerra anti-colonial, enquanto em Angola não conseguiram utilizar os Strella enviados pelos russos, na Guiné varreu-se a Força Aérea Portuguesa logo à primeira utilização, com o abate de dois FIAT.
O que é preciso, de um lado e de outro, é bom senso. Do lado do Comando Militar, parece-me que a situação justifica encontrar a pessoa certa para dar a cara e assumir que o poder não caiu na rua, conforme preocupação assumida no seu primeiro comunicado: essencialmente terá de ser um bom comunicador, com provas dadas, que domine bem português, francês e inglês (sim, que o actual CEMFA deixava um pouco a desejar nesse campo: em Angola pediu um tradutor português-crioulo), que não tenha estado envolvido nas cavalgadas dos últimos tempos, para conseguir a necessária credibilidade externa, um patriota de confiança a quem será dada carta branca, alguém brando e tolerante para com os perdedores, que terá igualmente de ser um militar carismático para que possa ser respeitado e obedecido pela tropa.
Uma vez que não será possível devolver rapidamente o poder aos civis, depois desta triste farsa, o «eleito» terá de governar, talvez mesmo de aguentar um breve arrufo da comunidade internacional eventualmente traduzido por um bloqueio económico. Também não estou a ver outra forma de a classe castrense guineense conseguir descalçar esta bota com dignidade, sem a pessoa indicada. Poderia ser tentada uma verdadeira reconciliação nacional, associada a uma amnistia «político-militar», que enterraria o «machado da guerra» para sempre, interrompendo o clima de violência e de vinganças a que se tem assistido… estabelecendo um clima de paz e concórdia a que o povo guineense muito aspira, consubstanciado pela unidade das Forças Armadas face à tentativa de agressão externa.
De outro modo, rompida a solidariedade nacional, tornar-se-á uma questão de sobrevivência para alguns, e apenas nos restará lamentar a dissolução do estado criado por Cabral, às ordens de uma comunidade internacional pouco entendida na matéria, manipulada por uma Angola à procura de humilhar aqueles que ousaram fazer-lhe frente… Viva a paz! Que o bom senso permita evitar uma noite das catanas longas!