«URRACA E TERESA: O PARADIGMA PERDIDO
Das profundezas do passado onde história e lenda se confundem, a tradição narrativa hispânica ergueu uma galeria de poderosas figuras de mulheres medievais cuja memória surge envolta numa aura maléfica distintiva. Os nomes que imediatamente ocorrem quando se evoca nessa sede o binómio poder/maldade são a infame D. Lambra, tia dos Sete Infantes de Lara, a traidora Condessa Sancha, casada com Garci Fernandez de Castela, e a deserdada Infanta Urraca de Leão, irmã de Afonso VI.
Independentemente da natureza lendária ou da comprovada existência histórica destas personagens, é incontroverso o carácter fabuloso dos episódios por elas protagonizados. Aí, elas surgem cobiçosas de poder e mestras na palavra, tecendo com fio de intriga sobre trama de luxúria a morte ou a desdita dos homens que as rodeiam – seus parentes muito próximos, por sangue ou por aliança. Enquadram-se as três num mesmo esquema imagético, sugestivamente designado por paradigma de Jezabel, no qual ambição, luxúria, transgressão e excesso se equivalem, em termos simbólicos, como marca de uma mesma natureza demoníaca empenhada na destruição da ordem instituída e daqueles que dela são representantes e guardiães.
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Segundo defendi já, o processo de estereotipia demonizadora que, na tradição narrativa hispânica medieval em língua vulgar, afectou as figuras de mulheres poderosas decorria não de um imperativo misógino global mas daquilo que poderia chamar-se uma misoginia funcional, incidindo com precisão em personagens femininas explícita ou implicitamente indiciadas como figuras de autoridade. Mulheres reconhecidas como possuidoras de uma esfera de poder próprio, um poder sentido como gravoso e abusivo – como concorrente, enfim – pelas instâncias que presidiam à escrita, esse instrumento do poder por excelência, numa sociedade androcêntrica. Assim, o processo de demonização da personagem feminina poderosa, condenando em bloco os seus actos e motivações, tinha como efeito lançar o anátema da ilegitimidade sobre o poder que ela detinha e exercia.
Como também já mostrei, ao contrário do que a muita atenção que os episódios jezabelianos têm merecido por parte da crítica poderia levar a pensar, o processo de codificação imagético-simbólica negativa a que as personagens femininas foram submetidas – resultando em curtas sequências narrativas, que mais do que abrir a problemática a fechavam sobre si mesma num julgamento inapelável –, não aumentava a visibilidade destas no panorama historiográfico, antes tendia a controlar o excessivo protagonismo por elas assumido numa memória – escrita ou oral não importa aqui – que a historiografia do século XIII herdava e recusava. Desta forma, e em equilíbrio dinâmico com a demonização das personagens, as crónicas apresentam marcas de uma estratégia contra-discursiva tendente a apagar, ou ao menos a tornar equívocos, os elementos que objectivamente conotavam as candidatas a Jezabel com o direito ao poder ou com o seu efectivo exercício. Neste equilíbrio, quanto mais o poder transparecia, mais o processo de demonização da mulher tinha de ser eficaz na indiciação da ilegitimidade da respectiva origem e uso.
Ora, em termos imagético-simbólicos, as personagens de Lambra, Sancha e Urraca, esse temível terceto de parcas hispânicas com as mãos tintas de sangue,encontram a sua natural posteridade na representação historiográfica de uma outra Urraca, sobrinha da anterior – a rainha Urraca I de Leão, filha de Afonso VI – e ainda da meia-irmã desta, por parte do pai – Teresa, senhora de Portugal. Com efeito, a imagem que a tradição cronística medieval delas nos legou é a de mulheres que não conheceram limite nem para o desejo nem para a acção. Mulheres indignas que disputaram ferozmente aos homens a quem deviam lealdade – os seus maridos, os seus filhos – o poder sobre a terra que tinha pertencido ao Imperador seu pai. Mulheres indomáveis que não souberam, ou não quiseram, refrear as paixões políticas ou eróticas ao serviço das quais colocavam o seu corpo.
Um duo temível de mulheres malvadas, ambiciosas e luxuriosas, esposas de fidelidade duvidosa e mães desnaturadas. Mais do que irmãs, elas surgem como personagens gemeladas cujas histórias de vida se esclarecem e intensificam mutuamente pela recorrência dos mesmos motivos e imagens. Curiosa sobreposição, que atesta estarmos a lidar com projecções autónomas, mas não independentes, de uma mesma pré-conceptualização feminina. A convicção de estarmos perante personagens construídas mais sobre as exigências de padrões imagético-simbólicos prévios do que sobre parâmetros devedores da realidade objectivável acentua-se quando verificamos que, salvaguardando o facto de a tradição historiográfica lhes não assacar a responsabilidade da morte de nenhum dos homens aos quais as ligam os mais estreitos laços familiares, as duas irmãs em nada se afastam do estereótipo encarnado pelas suas predecessoras.
Com uma novidade formal, contudo: é que o espaço textual que lhes é concedido tende a mostrar-se ainda mais reduzido. Raramente sucede participarem em episódios narrativos; pelo contrário, as suas acções apagam-se por trás de afirmações lapidares que as conotam sem remissão com os vícios e paixões a que, na óptica da misoginia medieval, as sujeitava o seu sexo. O que não deixa de ser surpreendente, se tivermos em mente que não estamos agora, como com Lambra, Sancha, ou a primeira Urraca, a lidar com figuras lendárias ou para-lendárias, protagonistas de hipotéticos cantares de gesta, mas perante personagens históricas de primeiro plano no intricado xadrez político peninsular do primeiro terço do século XII.»
Como forma de realçar o elogio que quero fazer, friso que sou um crítico feroz da academência, cuja mais recente promoção, encarna na absoluta mediocridade da reitora da Universidade de Letras do Porto, Paula Pinto Costa. Já quanto a Maria do Rosário Ferreira, da Universidade de Letras de Coimbra, posiciono-me precisamente no polo oposto. A historiografia portuguesa fica-lhe eternamente grata pelo estupendo contributo, bastando para o aferir a amostra de texto acima transcrito.
Há ainda, para além das duas meias-irmãs, uma outra campeã sensivelmente da mesma altura, do segundo terço do século XII, que os cronistas católicos condenaram🐍 à total obscuridade. Pretendo apresentar uma comunicação às VIII Jornadas Internacionais de Idade Média, que vão decorrer em Castelo de Vide entre 5 e 7 de Outubro cuja proposta é, através da vida íntima do fundador da nacionalidade, bem como da sua acção política, analisar atritos com a hierarquia religiosa, bem como as cumplicidades inter-religiosas com o grande capital. Uma Mulher emerge da sombra... mais do que igualmente lembrança de antigo Matriarcado, na continuação daquelas citadas pela ilustríssima Senhora Professora Doutora, essas por razões de sangue, esta afirma-se gravidando em torno do poder.
1 comentário:
Tendo a proposta sido recusada, haveremos de arranjar forma de dar à luz a comunicação engendrada.
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