Ontem fui até ao Teatro Sá da Bandeira dar uma conferência! Não quis deixar de a colocar aqui. Correu muito bem. Para além deste texto que levei e li de forma um pouco informal, acabei por me esticar com uma série de pequenas histórias que me iam ocorrendo, até porque foi bastante interactivo: falou-se dos problemas que afectam negativamente a psicologia africana, mas também de coisas boas e de questões identitárias.
**************** Fui convidado, julgo que a título de ex-consul honorário em Portugal da extinta Junta Militar, para vir hoje aqui falar sobre a Educação na Guiné-Bissau, sem outra habilitação especial neste campo para além da de ter feito a segunda classe em Bissau no ano lectivo de 1974/75. Visitei Bissau pela última vez, em 2001, se não me engano. Permitam-me que esclareça desde já que o processo político subsequente conduziu ao meu afastamento da actualidade guineense, que acompanhara intensamente desde 7 de Junho de 1998, como, aliás, a esmagadora maioria da opinião pública portuguesa.
Por isso, quanto a números e estatísticas, vou utilizar apenas os do analfabetismo, que me forneceu o meu amigo Geraldo Martins, Secretário de Estado da Educação por essa altura: um quarto de século após a independência, o analfabetismo continuava em níveis aterradores: 85% para as mulheres e 53% para os homens. Que posso eu partilhar convosco? Que comecei a perceber as razões pelas quais Fernando Pessoa afirmava que «todas as revoluções são tendencialmente inúteis»? Ainda me lembro das palavras que pronunciou, em tom profético, a «primeira-dama» guineense ao embarcar no avião para o exílio: «Volta di mundu i rabu di pumba». Ou seja: o mundo dá voltas e voltas e é como uma pomba a bicar o rabo, volta ao mesmo sítio. Devemos por isso desistir?
Permitam-me que vos conte a história do falhanço de um ideal. Este livro, que tenho na mão, foi primeiro publicado no Brasil em 1970, e, dois anos depois, em Portugal: «Pedagogia do oprimido», de Paulo Freire, numa edição Afrontamento, vindo depois a ser proíbido pela censura numa edição Dinalivro. Paulo Freire é reconhecido no Brasil como um grande pedagogo. Mas que tem isto a ver com a Guiné? Logo a seguir à independência, Paulo Freire foi convidado pelo Secretário de Estado da Educação de então, Mário Cabral, para fazer um plano de alfabetização, aplicando as suas ideias revolucionárias. Paulo Freire publicou em 1977, no Brasil, um livro sobre essa experiência, e Mário Cabral a sua correspondência no âmbito deste projecto. Afirmava Freire que a alfabetização não devia «esclerosar-se na frieza sem alma de escolas burocratizadas em que cartilhas elaboradas por intelectuais distantes do povo – em que pese às vezes sua boa intenção – enfatizam a memorização mecânica» (FREIRE, 1977, p. 91). Na boa tradição pedagógica de Abelardo, que há cerca de 8 séculos fundara a Universidade moderna, ao ter a ousadia, para além de envergonhar os mestres com a sua Dialéctica, admitir a dúvida como processo de conhecimento; e de Comenius, que há 4 séculos, continuou nessa senda, com o lema: "Ensinar tudo a todos" para possibilitar ao homem realizar-se no mundo como verdadeiro actor e artífice da sua existência.
Mas voltemos à Pedagogia do Oprimido e permitam-me que cite: «A narração, de que o educador é o sujeito, conduz os educandos à memorização mecânica do conteúdo narrado. Mais ainda, a narração transforma-os em “vasilhas”, em recipientes a serem “enchidos” pelo educador. Quanto mais vá “enchendo” os recipientes com seus “depósitos”, tanto melhor educador será. Quanto mais se deixem docilmente “encher”, tanto melhores educandos serão. Desta maneira, torna-se a educação um acto de depositar, em que os educandos são os depositários e o educador o depositante. Em vez de comunicar, o educador faz comunicados que os educandos recebem pacientemente, memorizam e repetem. (…) Fora da busca, fora da praxis, os homens não podem ser. Nesta visão distorcida da educação, não há criatividade, não há transformação, não há saber. Só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o mundo e com os outros. Busca esperançosa também.»
O alfabetizando era desafiado a reflectir sobre seu papel na sociedade enquanto aprendia a escrever, a repensar a sua história. O professor é mais um coordenador do debate, quase um animador. Para Freire a educação deve primar por ampliar a visão de mundo dos educandos e isso deve partir do diálogo. Para ele, a capacidade de diálogo «é, antes de tudo, uma atitude de amor, humildade e fé nos homens, no seu poder fazer e refazer, de criar e recriar.» Por isso Paulo Freire propunha uma alfabetização na língua materna, ou na língua mais próxima à materna, neste caso, a adopção do crioulo, mas o PAIGC, malgrado as intenções de Cabral consignadas na Plataforma do Partido desde 1963, acabou por decidir pelo português, argumentando que a adopção do crioulo isolaria a Guiné do resto do mundo. O projecto de alfabetização redundou num falhanço e foi cancelado anos depois. Freire diria no seu livro: “Não é por acaso que os colonizadores falam da superioridade e riqueza da sua língua a que contrapõem a pobreza e a inferioridade do dialecto dos colonizados”.
Um pouco desiludido, Freire comentaria, anos mais tarde, num livro em co-autoria com outro grande pedagogo, Sérgio Guimarães, A África ensinando a gente: «Quão difícil é realmente reconstruir uma sociedade! Criar uma sociedade nova, que vai gerar um homem novo e uma mulher nova! E aí a gente percebe, na verdade, como isso não tem nada que ver com os mecanicismos, que não tem nada que ver com espontaneímos, nem tampouco com voluntarismo. Mas, pelo contrário, isso demanda uma consciência política clara, que se vai clarificando mais na praxis política, fora da qual não há caminho, eu creio, não há solução. (...) Mas exactamente porque isso não é mecânico, mas sim dialéctico, em certos casos a educação anuncia o mundo a transformar-se, mas é preciso que esse mundo se transforme realmente para que o anúncio que a educação faz não caia no vazio. Isso tudo exige rigor de estudo, capacitação de quadros, o desenvolvimento económico e social do país, tudo a um só tempo! Não é fácil.» Acrescente-se que a eliminação física dos quadros coloniais e todos os «assimilados» mentais do colonialismo também não terão ajudado ao processo.
Dando um salto de 30 anos até 2008, decorreu em Fevereiro um Congresso de Educação que evidenciou uma enorme apetência dos professores, tendo contado com mais de 120 participantes. Segundo as conclusões, publicadas no site Ecclesia, «Uma das enormes falhas verificadas é a grande dificuldade dos professores utilizarem materiais didáctico-pedagógicos nas salas de aulas, tentou-se que a formação ministrada fosse de cariz essencialmente prático, abordando os conteúdos e explorando materiais para os trabalhar, em simultâneo. Pretende-se desta forma que os professores introduzam nas suas salas novas metodologias que ultrapassem o recorrente método expositivo e o apelo à memorização e mecanização dos conteúdos sem a sua real aprendizagem. Parte de formação consistiu ainda na construção de materiais didácticos com recurso exclusivo a materiais locais e a sua exploração adequada tendo em conta os vários conteúdos abordados». Volto a dizer: «Volta di mundu i rabu di pumba». Tantos anos e voltámos ao mesmo, estamos para aqui a dar razão ao Paulo Freire! Ensinar / aprender não é macaquear o conhecimento!
O panorama dos últimos anos não é animador: segundo as Nações Unidas, a Guiné-Bissau dispõe de um dos piores sistemas escolares do Mundo. Os professores passam meses sem receber os seus salários e recorrem frequentemente à greve. Uma repórter, Phuong Tran, deslocou-se à localidade de Canchungo, ao Liceu Ho Chi Minh, que se situa a cerca de 70 Km de Bissau. Recolheu, entre outros testemunhos igualmente gritantes, o de Norberto Mendes: ”O meu pai e a minha mãe são muito pobres, portanto não tenho dinheiro para pagar a escola. Tenho que encontrar empregos para conseguir pagá-la. Estou muito cansado.” A maior parte dos professores optam pelo ensino privado (palavra pomposa que esconde a triste realidade de as comunidades terem de alimentar os seus professores sem salário…). Chegou-se ao ponto, há uns anos, de o ministro da Educação ter anulado o ano escolar porque os professores só tinham dado um décimo das aulas. Tudo isto terá levado Dulce Borges a interrogar Didinho (Fernando Casimiro), no seu site sobre o sistema de educação: «Mas haverá um sistema de educação?»
Se sentiram este meu discurso como derrotista, não era essa a minha intenção. Continuo a pensar que a Guiné-Bissau, com toda a sua diversidade étnica e riqueza humana concentrada num espaço geográfico tão exíguo, tem condições para liderar um «Despertar do Continente». Paulo Freire, admirador de Amílcar Cabral, queria fazer da Guiné um balão de ensaio para uma grande revolução. Uma nota de esperança, dedicada aos jovens estudantes guineenses: reinventem-se! Escrevam crioulo e enriqueçam-no! Permitam-me que, para acabar, exalte as vantagens do crioulo face ao português, graças a uma pequena história pessoal: viajaram comigo para Bissau uns holandeses; todos nós, portugueses, sabemos que estas etnias bárbaras são pouco dadas a afinarem a sua língua à nossa pronúncia, nunca conseguindo livrar-se do sotaque por mais dezenas de anos que passem no nosso país; pois pasme-se, os rapazes, ao fim de 15 dias já falavam o crioulo sem qualquer sotaque!