terça-feira, 30 de setembro de 2014

Ainda o assassinato de Cabral

As intrigas dentro do PAIGC eram mais que muitas, os contactos com a PIDE pareciam ser uma alavanca, uma arma secreta dos traidores... E não estamos apenas a falar dos que essa «polícia» soltou (e, segundo alguns, telecomandou). É óbvio que a PIDE estava apostada numa estratégia de promoção das clivagens dentro do PAIGC, mas isso era mais que sabido, não era novidade nenhuma, sendo um factor de importância menor, como trama. Como o eminente historiador Leopoldo Amado escreveu, num artigo publicado pelo site do Didinho,

«à introdução da autonomia progressiva como isco, ao mesmo tempo que, por um lado, se exploravam as diferenças étnicas entre os guineenses, e, por outro, entre estes e os caboverdianos, Cabral contrapôs...»

Ora não há qualquer traço, nos arquivos da PIDE, da preparação de uma operação de tal envergadura (ao contrário de outras pequenas operações de muito menor importância, largamente documentadas). Lembre-se que o General Spínola lamentou publicamente a morte de Cabral. Como defende Joaquim Luís Fernandes, em comentário à mais recente entrevista (pelos vistos, quebrada) de Leopoldo Amado a'O Democrata, é difícil conceber que a PIDE fosse contra a política do General Spínola.

Na minha leitura pessoal e falível, o Leopoldo ficou irritado (e com razão) com a escolha de um título sensacionalista (passe a sua relevância), ainda para mais tendo ficado previamente acordado o seu direito de revisão. No contexto das acusações recentemente levantadas contra Pedro Pires, e talvez para desfazer um pouco o seu impacto, terá adoptado a política de «uma no cravo outra na ferradura», malhando a ferro frio, ou seja, insistindo na tecla da PIDE e dos «agentes duplos». No entanto, todas as evidências apontam claramente noutro sentido. Havia quem jogasse com pau de dois bicos...

Recordo-me de, há uns anos, o blog do Luís Graça ter partilhado um artigo de José Paulo Fafe de 1999, precisamente com base nos arquivos da PIDE, a história dos contactos de Nino Vieira, via Suíça, para se «render», com os seus homens, em troco de uma vida descansada (aburguesada) em Lisboa (nalgum momento em que se terá sentido mais tremido, devido a outras grandes responsabilidades)... Grande violência para o General Spínola, o qual, por detrás do júbilo manifestado publicamente na ocasião com essa perspectiva (que, como todos imaginam, não se chegou a concretizar), sentia a dor de ver reproduzido o filme (a ideia) pela qual morreram os seus Majores, ainda para mais, na pessoa que, na altura, teve por principal responsável pelo nefasto e bárbaro acontecimento, Nino Vieira e Pedro Pires... (que se saiba, Nino nunca comentou este artigo).

Quanto à PIDE, «coitada»… Quando foi o descalabro de Guiledje, o Director Geral telefonava para Bissau a perguntar se ainda se combatia em «Guidage no Sul» (confundindo os G’s da Guiné). Neste caso, não podemos afirmar que a PIDE tenha instrumentalizado os assassinos (muito mais plausível seria supor que estes sim foram instrumentalizados por «poderosas forças obscuras», que lhes deram cobertura para o efeito, pois estes ofereciam-se como bodes expiatórios ideais), mas decerto que podemos garantir que a PIDE está a ser «instrumentalizada», assancando-se-lhe uma força e capacidade que esta não tinha (nem no terreno, nem em relação à tropa ou na própria sociedade portuguesa), com o intento de apagar as pistas para os verdadeiros culpados.

Replicando um dito que li no irmão Doka:

Sanguessuga sta na nô metadi.

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Kaleta II

Na avaliação de propostas e alternativas de fornecimento de electricidade, a autonomia energética não é um factor que se possa desprezar.

Sempre que se fala de investimento estrangeiro, para desenvolver e valorizar os recursos da Guiné-Bissau, parece que os investidores se retraem por razão da percepção dos «riscos políticos» associados.

[Verdade seja dita, pouco se tem feito para transmitir mensagens claras nesse sentido: uma das primeiras atitudes das novas autoridades, foi «queimar» o contrato das «areias pesadas» de Varela, nas mãos dos russos. Claro que seria esperar demais e acreditar no Pai Natal, que os russos, com um contrato «temporário» e «ilegítimo» como lhe poderiam chamar, iriam investir em grandes preocupações ecológicas! No entanto, fizeram uma primeira experiência, da qual seria importante conhecer os resultados e as expectativas criadas, bem como dar um sinal claro a futuros investidores. Não é preciso ser muito esperto para adivinhar que o discurso correcto, com visão de futuro, seria: «Consideramos este contrato assinado por um Governo ilegal. Contudo, para que se saiba, na Guiné-Bissau, mesmo para além das nossas “peripécias” políticas internas, respeitamos o investidor estrangeiro. Por isso, reuniremos com a firma interessada para avaliar a experiência, esclarecer as potencialidades do negócio e negociar uma eventual continuação da sua exploração económica, tendo em conta a minimização do seu impacto ecológico e humano.»]

Se a electricidade que vem do Sul for 1 CFA mais barata por KW, fará sentido optar por criar uma infra-estrutura completamente dependente do exterior? Então, quando se trata de Bissau, há imensos riscos políticos e para Conacri já não há? Uma estrutura nacional criará postos de trabalho localmente, mantendo o dinheiro a girar por perto… O argumento economicista, só por si, não é válido. Ser mais barata não basta: tem de ser muito mais barata e isso tem de ser exactamente quantificado e fixado contratualmente a longo prazo.

A Guiné-Bissau é um sítio altamente energético. Simplesmente, por ser rasa e chã, não possui uma capacidade de retenção directa, capaz de armazenar energia, para a distribuir continuamente, sob a forma de uma barragem. No entanto, flui imensa energia, não só para montante, com a enchente da maré, mas a vazante, incrementado pelas águas continentais. Criatividade no aproveitamento inteligente daquilo que a Natureza colocou generosamente à disposição da Guiné-Bissau, é certamente uma boa ideia, e contributos voluntaristas, mas claramente motivados, como o de Joaquim Luís Fernandes, são certamente merecedores, no mínimo, da maior atenção e discernimento.

Além dos argumentos já aduzidos, será que faz sentido (atendendo às fortes reduções no consumo obtidos nos últimos anos nas lâmpadas, electrodomésticos e outro «software» eléctrico), investir em distribuição, «hardware» com elevados custos paisagísticos, sobretudo sabendo que o potencial consumo é, para começar, incipiente, uma vez que vindo do nada? Para pequenos núcleos de consumo local (adstritos a uma certa disciplina, economia e racionalidade) pequenas unidades solares, cuja viabilidade económica é emergente, seriam perfeitamente suficientes e sustentáveis.

Um último ponto. É no mínimo curioso que, pouco tempo depois do anúncio da electricidade gambiana, para abastecer a região, surja esta proposta tão bem definida e «economicamente» apresentada pelo Eng. Baldé (não confundir com o seu homónimo do Petróleo, da Agência de Cooperação na zona económica comum Guiné-Bissau / Senegal, de nome próprio Júlio). Com estes exemplos, por que razão deveria a solidariedade regional servir de argumento?

De qualquer forma, seria proveitoso reflectir na proposta da Guiné-Conacri, mas na perspectiva de uma negociação «cerrada» para obter um preço a «granel» (aproveitando a sazonalidade), que seria eventualmente canalizado (por poucos Kms) para perto de Boé, na direcção de Buba, onde se poderia negociar, com um bom preço da electricidade como input, a transformação local da bauxite (o caminho-de-ferro não serviria para exportar bauxite em bruto, mas sim alumínio ou derivados, muito mais leves, ou mesmo produtos acabados, como bebidas em latas de 33cl), incrementando a racionalidade económica da sua exploração e o desenvolvimento nacional.

Kaleta na calha

Algumas nebulosas rodeiam o projecto hidro-eléctrico sino-guineense de Kaleta, recentemente defendido como solução para o abastecimento de electricidade na Guiné-Bissau, n'O Democrata (ver link à direita).

É estranho que o projecto da empresa chinesa de capitais estatais, responsável pelo projecto, em lugar algum da sua página da internet sobre o assunto, dê conta da localização exacta do projecto, o que deu origem a um erro da wikipédia, ao confundir duas localidades homónimas, sem desambiguar. Os jornalistas propagaram vários erros geográficos nos artigos que foram escrevendo sobre o assunto.

A origem do projecto estaria numa promessa eleitoral de Alpha Condé, de aliviar o carácter irregular do abastecimento de energia eléctrica. Estaria, em 2011, a contar com promessas de George Soros para financiar a fatia de 1/4 do investimento que caberia ao estado da Guiné-Conacri no projecto (financiando um banco chinês, evidentemente igualmente estatal, os restantes 3/4), o que não chegou a acontecer, tendo este conseguido a maioria dos fundos junto da CEDEAO, manifestando-se a posição do Senegal instável, entre o projecto de electricidade gambiana, o guineense e um eventual projecto próprio.

Logo no início, os trabalhos depararam-se com alguns imprevistos, como infiltrações, que atrasaram o projecto, e foram dadas instruções silenciando os técnicos, sobre o andamento. O presidente visitou o estaleiro em Junho deste ano, dando conta, com pompa e circunstância, de «grandes avanços» e de cerca de 75% de execução. No entanto, há componentes cujo fabrico, teste e transporte estão mais atrasados, revelando-se as declarações que foram sendo produzidas sobre os trabalhos bastante díspares e inconsistentes quanto ao cronograma previsto.


Quanto à capacidade de transporte da electricidade, na reportagem (clique na imagem para aceder) dedicada pela televisão guineense à visita presidencial a Kaleta, um engenheiro referiu como destino da electricidade Conacri, e eventualmente, Fria, cidade das proximidades, deixando implícito não estar, para já, prevista, qualquer linha para Noroeste, em direcção à Guiné-Bissau (ou em qualquer outra direcção, aliás).

No entanto, um dos entusiastas e pioneiros do projecto, o ex-Ministro da Energia, após ter sido despedido do cargo, em Janeiro deste ano, sugeria, em entrevista a uma rádio, que as expectativas do projecto estavam muito inflaccionadas junto da opinião pública, avisando que a potência prevista, de 240MW, só se verificaria, no melhor dos casos, sazonalmente, caindo para 45MW, no pico oposto, ou seja, o referido projecto só poderá garantir um abastecimento irregular. Da potência total anunciada, só uma parte inferior a 1/5 é certa e contínua, não sendo suficiente para as necessidades do país, e, na sua opinião, só com um próximo passo, a construção de uma outra barragem, complementar, nas proximidades do mesmo rio, o Konkoure, se poderia dar por resolvido o problema do abastecimento local em energia (isto, para não lembrar que, extraindo bauxite, poderão absorver imensa energia). As dúvidas aumentam quando se pode ver o projecto classificado, num site chinês de apoio à decisão, como de «suspicious or inactive».

A conclusão parece bastante óbvia: a grandeza do projecto não é sequer suficiente para as necessidades da Guiné-Conacri, não estando prevista (nem sendo expectável) a sua «canalização». A esperar pela segunda barragem (cujo financiamento ainda não está previsto), mesmo que os chineses continuassem com bom ritmo (espera-se, embora sem muita convicção, que a primeira turbina de Kaleta entre em funcionamento daqui a pouco mais de seis meses, em Maio de 2015), o país vizinho só virá a ser, eventualmente e na melhor das hipóteses, electricamente excedentário, já bem adentrados na segunda década deste século.

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PS Acabei de ler, no mesmo jornal (que se está rapidamente a tornar numa referência nacional), um magnífico artigo assinado pela redacção, em torno da função de Porta-Voz do Governo, que merece ser lido. Parabéns!

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

O retorno à vaca fria

O apelo feito pelo Presidente para o regresso ao país, se não é novidade, pois já se dirigira à diáspora no mesmo sentido logo após a sua eleição, ganha outros significados no actual contexto: parece claro que o gesto antecipa a recepção (apoteótica) que se prepara ao intriguista-mor Cadogo, macaqueando o retorno de Nino...

Rui Machete, voz obediente ao seu dono, insiste em falar no envio de tropas angolanas para a Guiné-Bissau. Este conluio triangular, liderado pelos instigadores da desforra, José Eduardo dos Santos e o seu lacaio Carlos Gomes Junior, é altamente lesivo da soberania nacional e pernicioso para o futuro do país.

Se Angola (ou melhor, o seu dinheiro) poderia ser bem acolhida, a título de investimento no desenvolvimento da exploração de recursos, a insistência no envio de tropas é claramente inoportuna e só poderá prejudicar o clima, já de si tenso, no seio das Forças Armadas. Para além de uma ameaça, é uma ofensa!

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Quem ganha COM FUSÃO PAIGC / PRS ?

O Primeiro-Ministro, que, distribuindo poder a outros Partidos e personalidades independentes, esperava contrabalançar o peso do seu próprio Partido, para garantir uma maior margem de liberdade e capacidade de manobra própria, não tem demonstrado, por enquanto, possuir estratégias bem delineadas ou sequer uma visão clara das prioridades, nem o carisma, empenho e liderança necessários, para conseguir uma orgânica mínima no seu Governo, talvez prejudicado pela interminável tentativa de conciliar facções e arbitrar apetites no interior do seu Partido (mas também por dificuldades financeiras e uma agenda «exógena»). Para além de uma ou outra iniciativa mais voluntarista (e relativamente inconsistentes, diga-se, como se viu no caso da recolha do lixo), o Governo tem primado por uma manifesta ausência de eixos estruturantes para a sua actuação.

Num enigmático e equívoco comunicado, o PRS declarou publicamente a sua fusão ad eternum com o PAIGC, correspondendo ao namoro pós-eleitoral movido pelo Primeiro-Ministro. A unanimidade da decisão da Comissão Política mal consegue disfarçar a clara ausência de liderança nesse Partido. A constituição deste «bloco central», dominando a quase totalidade dos lugares da assembleia, não será prenúncio de implosão para o PAIGC, vítima do seu próprio «sucesso» eleitoral e métodos políticos, ao canibalizar o país no «festim» dissolutivo do costume?

Agora que se «assentaram arraiais», e que os «leões» partilharam a carniça, é chegado o tempo, mais moroso e paciente, das hienas e djagudis, os quais, embora excluídos para já, não deixarão de reclamar o seu quinhão.

A história do PAIGC, de vinte em vinte anos:

1954-1974 Amílcar Cabral tomou Partido.
1974-1994 A independência tornou-o único.
1994-2014 A «democracia» devolveu o debate.
2014 - FIM

Paradoxalmente, ao pretender-se totalizante e absorvente da restante massa política, com o objectivo de calar a oposição, a inerente (con)fusão acaba com o Partido.

A máscara caiu: já não é um Partido, é um Todo, um maquiavélico polvo cujos tentáculos sugam toda a vida da nação, diabólica e toda-poderosa associação de maus feitores, sem qualquer correspondência positiva com um verdadeiro e construtivo debate político, numa mentalidade mesquinha de interesses pessoais que parasitam indefinidamente o desenvolvimento do país.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Ditadurocracia: a réplica

OPINIÃO!

Quando falei aqui da inconstitucionalidade surgiram as reacções. Tudo bem.
Alguém um dia me interpelou dizendo que não devemos criticar nada, o melhor a fazer é esperar os resultados e aí eu pergunto:

O que significa a democracia sem críticas? O que significa o Governo ou o Presidente da República sem o Povo?
Estamos, é claro, só na Guiné-Bissau com uma realidade singular sobre a democracia, a política e a cidadania onde cada um faz o que quer como quer sem que ninguém o critique ou o leve à justiça. A impunidade vai crescendo e vai incentivando outras práticas desgostosas ou inadequadas para o país e os cidadãos.

Poucas pessoas têm a faculdade de analisar comportamentos, decisões e factos públicos. Outras têm a de manipular e branquear a opinião pública.

Estamos bem. Todos nós pensamos assim. Estamos bem.

Mas, o estar bem não significa que debaixo do meu leito deva esconder o compadre com receio de ser capturado pelo dono da casa e chefe de família. Não significa que os salários devem ser pagos apenas parcialmente, com 90% (?) das infraestruturas rodoviárias, sanitárias, escolares, de telecomunicação, entre outras em péssimas condições. Não significa que temos que ''nepotizar'' a Função Pública e colocar pessoas incompetentes em lugares que não lhes compete administrar.

A Guiné-Bissau é de todos nós. Muitos não vêm isso mas no lugar da Democracia, existe uma DITADOCRACIA simbólica que corrói nossas sociedades. O PAIGC é o mesmo de ontem e será o mesmo de sempre. Um partido que não admite concorrências um partido que não dialoga não assimila a essência profissional técnica, académica, muito menos a democrática.

Um partido que quer e está a branquear os seus interesses obscuros em detrimento da democracia. ''Fora do PAIGC ninguém é ninguém, para seres alguém precisas ser membro ou militante do partido libertador''.
E, as guerrinhas pelo poder (Ministros, Secretários de estado, DGs, Governadores Regionais, etc) continuam e vão continuar. Até me parece que este partido ultrapassa o perfil de um partido político, seria mais uma congregação de mafiosos e dissimulados.

Sublinho e replico.

Valdir da Silva

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Opinião

Quando há inconstitucionalidade em pleno exercício de poder das autoridades do país ditas legítimas é porque nunca houve a ''democracia''. O povo pode até votar a favor de um ou outro mas a verdadeira democracia não é vivida nem é respeitada pelos órgãos da soberania. Na democracia não há obscurantismo nem negociatas de esquerda. Quero dizer com isso que a democracia é igual aos dois pés: quando um avança, o outro completa o passo.

Mas...povu, es povu di Guiné-Bissau nfiansa nel elis ku ta pu elis ku ta frustau tambi.''

Valdir da Silva

Água na fervura

Felicitações ao novo Chefe de Estado Maior das Forças Armadas, por ocasião da sua tomada de posse.

Segundo disseram à Lusa fontes militares, a passagem de poderes decorreu num ambiente cordial, de forma «rápida e franca», com Na'Ntan endereçando ao seu predecessor palavras de respeito, quase em jeito de preito de vassalagem, como publicou o irmão Samba Bati no seu blog Rispito.

Parabéns também a António Injai, pelo patriotismo demonstrado e pelo grande serviço que prestou à Guiné-Bissau, num dos seus momentos mais tremidos, impondo respeito, a unidade no seio das Forças Armadas e a paz civil. Esperemos que Vosso sucessor, valorizando Vossa herança, consiga manter o mesmo nível de obediência e coesão, tarefa para a qual se lhe expressam desde já votos dos maiores sucessos.

Emplastro

Do dicionário, no sentido literal, e esquecendo significados mais informais:

«Remédio para uso externo»

O Presidente veio inteligentemente aplicar um emplastro sobre a ferida, ao reduzir o nível de atrito, endereçando umas palavras simpáticas e abrindo as portas da Presidência ao Ex-Chefe de Estado Maior das Forças Armadas (não será necessário, portanto, levar bazuca).

Uma vez mais, Rui Machete veio demonstrar a sua falta de sentido de oportunidade e de tacto diplomático. As declarações gratuitas e deslocadas que fez são altamente ofensivas da soberania guineense, denúncia já feita pelo Didinho, agravadas ainda pelo tom de mesquinha satisfação pela «desforra» e, para além disso, armado em «dono da guerra».

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Decapitação das FA?

Parece já claro que o golpe do Presidente foi perfeitamente premeditado e orquestrado, senão veja-se o respectivo cronograma: antes da 1h, ou seja, poucos minutos depois de o Primeiro-Ministro dar por encerrado o Conselho de Ministros, já estava na rua o Decreto presidencial. O Primeiro-Ministro, que foi claramente subalternizado no processo, foi colocado perante o facto consumado, ou, por outro lado, fez um erro de avaliação e tornou-se cúmplice desta ignóbil cabala, constrangido por imperativos financeiros? O que mais choca, para além da atitude indigna e da aposta no confronto, são os métodos conspirativos da velha escola que foram utilizados. Para quê tanta hipocrisia e dissimulação (com nomes supostamente propostos pelo CSDN e chumbados em CM)?

Os actos praticados, atendendo às suas motivações geo-políticas, são claramente anti-patrióticos e configuram um grave crime de TRAIÇÃO. Esta perturbação da legitimidade hierárquica, esta ruptura brusca da cadeia de comando, só poderá resultar em (mais) entropia e caos. O cargo de CEMFA não é de «confiança política», como o é o de Chefe da Casa Militar da Presidência. Ao querer transformar as Forças Armadas no seu quintal privado, ultrapassando Domingos Simões Pereira, José Mário Vaz mostra a sua verdadeira faceta de autocrata, expondo gratuita e desnecessariamente o país a uma grande instabilidade, apenas para satisfazer algumas particulares sedes de vingança...

Decreto 42

Embora ainda esteja carente de mais informações, o Decreto 41, de que fala o irmão Umaro Djau, parece ilegal.
> ver link à direita

O Decreto 41 não deveria ser de exoneração? (de Biague Na Ntan como chefe da Casa Militar da Presidência)

[Jomav deveria aprender com José Eduardo dos Santos, que chega a utilizar o mesmo Decreto para fazer ambas as coisas...]

Ou está prevista a acumulação de funções, e teremos um super Chefe de Estado Maior / da Casa Militar, numa concentração de poderes nunca antes vista?

O que de facto está a acontecer, com a publicação intempestiva deste Decreto,  é que está em curso uma tentativa de GOLPE DE ESTADO institucional (estilo Fujimori, no Peru) promovida pelo Presidente da República, na base da política do facto consumado. Resta conhecer a posição do Primeiro-Ministro, que assim se vê não apenas subalternizado, mas sobretudo desautorizado.

Nem o apelo de Ramos-Horta, com a sua reflexão do dia (aliás, do mês, pois tem estado com uma actualização pouco frequente), pedindo para não se humilhar o adversário, parece ter surtido qualquer efeito. Lamentavelmente, parece que o Presidente da República encara as suas próprias Forças Armadas como o inimigo, enveredando por uma caminhada solitária e autista.

Apurados os factos, aos deputados da nação, a reunir em assembleia, resta votar a destituição de Jomav, para evitar males maiores, que em nada ajudariam a consolidar a reputação do país. O Presidente eleito caminha alegremente num campo minado... chegará o Decreto 42 a ver a luz do dia?

Fumo branco?

O equilíbrio de poderes, partilhados entre Presidente e Primeiro-Ministro, faz com que, à iniciativa de exoneração do CEMFA, tomada pelo Presidente, tenha correspondido o Primeiro-Ministro, de forma célere, na apresentação de um nome para a correspondente nomeação, resultante do Conselho de Ministros, convocado esta tarde com carácter de urgência, tendo esse assunto por único ponto de trabalhos.

Num parto sempre difícil, é necessário passar a pente fino sucessivas propostas emanadas do Conselho de Defesa, até chegar a um consenso. A prudência recomenda que o eleito pertença ao Comando Militar, recaíndo sobre alguém conhecedor dos assuntos por dentro, de forma a não desarticular as chefias e a não colocar em causa a unidade e a cadeia de comando das Forças Armadas. Esperemos que acertem.

Na escolha de um Papa, é dogma que intervém o Espírito Santo. E, por vezes, o vencedor não é nenhum dos nomes mais falados, mas uma surpresa. De qualquer forma, ao contrário do que alguns já apregoam nas redes sociais, esse escolhido não é ainda o «novo CEMFA»; o nome precisa do beneplácito do Presidente, sem o qual o processo volta à casa de partida... pois este pode não aceitar a(s) primeira(s) opção(ões).

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Decreto 41?

O Decreto 39, datado de 17 de Julho do corrente, nomeava Biague Na Ntan para chefe da Casa Militar da Presidência da República.

Ontem, sensivelmente dois meses depois, o Decreto 40, exonerava o Chefe de Estado Maior das Forças Armadas, António Injai.

[no documento oficial, que vi publicado nos Intelectuais Balantas, há alguns elementos estranhos: o nome de António Injai foi realçado a negrito, destaque que não mereceu o próprio título «Decreto», deixando antever uma possível intenção de estigmatização; para acabar, ao frio «publique-se» da praxe, foi enigmaticamente acrescentado um ponto de exclamação, que pode denotar um certo regozijo, no mesmo sentido - tal como, num jogo de xadrez, se anunciaria «Xeque-Mate!».]

As relações entre estes factos acabam aqui. Biague Na Ntan, mesmo admitindo que dispondo de «cunha» do Presidente, não se adequa ao perfil requerido para CEMFA: não está no activo e não conhece a realidade das casernas. As especulações que tentam promovê-lo são inteiramente desprovidas de fundamento, com base no mais elementar bom senso. O cargo não é de «confiança política».

Resta saber se, de entre os potenciais candidatos que foram falados, algum tem o carisma mínimo necessário (e se pode contar com o reconhecimento e beneplácito dos seus pares), para encarnar uma liderança inequívoca, que substancie as aspirações e represente o sentimento da classe castrense junto da classe política. Caso esse «predestinado» não venha a emergir naturalmente, salvaguardando a unidade e identidade nacional da tropa, a atitude presidencial arrisca-se a transformar-se num autêntico tiro no pé, dando origem a um poderoso foco de instabilidade. Pelos vistos António Injai (que, exonerado, não foi ao Palácio Presidencial, onde estiveram os Chefes de Ramo e o seu Vice) parece que já se manifestou indisponível (e já deve ter começado a rir).

O salto maior que a perna?

Quando, morto el-Rei de Portugal, se alçava seu sucessor, tinham os seus súbditos por hábito, pedirem a confirmação de cargos ou doações que usufruíam da coroa, actualizando assim os seus laços de fidelidade pessoal para com o novo monarca. Assim se fazia e se passava escritura renovada, depois de apresentados os títulos históricos e de confirmada a sua autenticidade.

Jomav, como Presidente da República, não podia admitir prolongar muito para além de seis meses, o ambíguo mas determinante mandato do CEMFA, sob pena de ser visto como andando a «comer à mão» das chefias militares, sobretudo perante o exterior. O facto é que recebeu o poder precisamente das mãos do Comando Militar que assumiu o contra-golpe de 12 de Abril de 2012.

Estão a concurso propostas para o lugar deixado vago pela exoneração...

Sua Excelência o Presidente da República estará decerto a saborear o momento de imprevisibilidade que o seu Decreto gerou no seio da comunidade guineense. Contando com indesejados contributos, que lhe queimam qualquer caminho por onde seguir, não tenho já dúvidas de que sairá reforçado pelo presente processo, mesmo se simplesmente nomear António Injai.

Não se venham a admirar, os mais incautos e desprevenidos, se porventura se vier a dar uma eventual recondução de António Injai no cargo de CEMFA: «dois passos à frente, um passo atrás». Tem sido esse o estilo, um pouco impulsivo, a que já nos habituou José Mário Vaz, nos mais de cem dias que já leva de presidência.

PS (a confirmar-se) A voluntariosa ECOMIB poderia dispensar-se de encenações visando apenas abrilhantar o momento, pois o guião é muito incerto e qualquer visibilidade mais ostensível pode dar aso a leituras desadequadas.

Fumo negro

A exoneração do Chefe de Estado Maior das Forças Armadas, anunciada a seco pela Rádio Nacional, caiu como um balde de água fria. A confirmar-se que esta foi feita sem consulta prévia ao visado, parece pouco avisado. Pior é deixar-se pairar a incerteza, pois o decreto «entra imediatamente em vigor», mas não indica sucessão, para este importante cargo do qual depende a estabilidade governativa.

O golpe está dado, de acordo com a agenda. Seria inteligente deixar as próprias Forças Armadas eleger colegialmente o sucessor de António Injai, evitando impor nomes e gerar clivagens, que podem jogar contra a autoridade presidencial. E não convirá manter o suspense e a chefia vacante por muito tempo, pois isso criará um perigoso mal-estar. Dissipe-se a nebulosa e ventile-se fumo branco.

domingo, 7 de setembro de 2014

Fiscalização das Pescas

No contexto das graves carências que demonstra a Guiné-Bissau, para fiscalizar eficazmente as suas águas territoriais (o que prejudica a sua capacidade negocial num sector que representa um grande potencial e uma importante fatia do financiamento do Estado), faz sentido lembrar uma sugestão do Progresso Nacional, aquando do caso do Oleg Naydenov: criar uma lei que obrigue todos os navios, acima de um certo calado ou tonelagem, a ter a sua baliza electrónica ligada mal entrem nas águas guineenses, de modo a permitir o seu rastreamento: seria entretanto criado um observatório, baseado em recursos informáticos simples e disponíveis na Internet. Há coisas simples, que o Governo pode fazer, com criatividade, mesmo que não disponha de grandes recursos para alocar.

Por falar nesse caso de arresto do arrastão russo, que supostamente pescava ilegalmente na zona económica de exploração comum, seria bom saber em que ponto estão as negociações «informais» com o Senegal, que envolveram uma comissão guineense. Embora nunca mais se tenha falado nisso, por o Governo guineense, à época, ser rotulado de ilegítimo, houve uma clara violação do Direito Marítimo que regula essa Zona comum, pois o Acordo que deu origem à Agência de Cooperação entre os dois países estipula que é o Direito guineense que se aplica às Pescas (ao contrário do petróleo, caso em que se aplica o Direito senegalês). Há esclarecimentos necessários com o Senegal, relativamente ao caso e ao montante da multa aplicada aos russos (e, mesmo admitindo a sua mais que duvidosa legalidade, resta a questão de que o erário público do Senegal não pode ser o único beneficiário de uma multa aplicada na zona comum, onde os proveitos das Pescas devem contratualmente ser repartidos 50% - 50%). Como a história deveria ensinar, não é bom criar precedentes gravosos, em questões de soberania, sobretudo sabendo como a Guiné tem sido prejudicada ao longo do tempo, neste caso.

Mas voltando à fiscalização. Perante a ausência de meios, uma vez mais, poderia o Governo dar provas de criatividade. Estão hoje disponíveis modelos relativamente baratos de drones de vigilância. Com um pequeno investimento, seria possível, pelo menos, saber o que se passa (logo se pensaria numa forma igualmente barata de castigar os prevaricadores). Porque não entregar à Força Aérea esta missão? No âmbito do espírito de reconciliação que o Presidente tem promovido (anote-se que reconheceu o seu erro em relação ao batalhão presidencial), com a proposta não apenas de reintegração nas Forças Armadas, mas de recuperação funcional, permito-me sugerir, para responsável dessa «Força», o ex-Chefe de Estado Maior da Força Aérea, Melcíades Fernandes, que tenho a certeza de que estaria à altura de tal incumbência.

A morte de Cabral

Caro irmão do Bambaram di Padida:

O teu apego, como aliás, o de muita gente (sobretudo em Cabo Verde), em relação à responsabilidade dos portugueses na morte de Cabral, como se nota no meio da recolha de informação que publicaste recentemente sobre o assunto, está desactualizado. Permite-me uma dica.

Muitos são os estudiosos da vida de Cabral, como dizes, que apresentaram as suas versões, a que se pode acrescentar a investigação de Joaquim Furtado para documentário da RTP.

No entanto, há alguns pontos assentes.

O papel da polícia política - serviços secretos portugueses foi mínimo, configurando um envolvimento de rotina, muito vago e inconsistente. Se os portugueses foram de imediato acusados, por razões óbvias, agravadas pela lembrança do raid sobre Conacri, pouco mais de dois anos antes (o qual, entre outros objectivos, se destinava a capturar Cabral vivo - eram essas as ordens de Spínola, que queria integrá-lo em lugar de destaque no seu Governo - já Sekou Touré era indiferente ser vivo ou morto), o facto é que, precisamente nessa operação, segundo os militares, tudo, mas mesmo tudo aquilo que dependia da PIDE, correu mal. Tanto as informações, como os pretensos «aliados», tudo se revelou uma farsa. Nunca a PIDE se conseguiu infiltrar de facto no PAIGC. Spínola, por seu lado, é insuspeito, pois alimentava a ideia de se vir a encontrar pessoalmente com Amílcar Cabral para negociar... (Marcelo Caetano, ao proibir-lho, deu aso a uma extensa lista de material de guerra exigido para defender o «indefensável» e ao afastamento do General, para a Metrópole).

O mesmo Spínola, quando lhe retalharam os Majores envolvidos em negociações em chão manjaco (meio ano antes do raid de Conacri, que, desse ponto de vista, seria uma «vingança»), terá suspeitado (como disse em entrevista ao Expresso quase um quarto de século depois), que as ordens teriam vindo de Pedro Pires e do «grupo moscovita» de Nino Vieira. Insistir na versão que fez dos portugueses o bode expiatório do assassinato de Cabral é não apenas um erro histórico crasso, mas continuar a esquecer os verdadeiros culpados, altos dirigentes do PAIGC...

Como acusou em 2011 e com razão, José Maria Neves, visando Pedro Pires (os 400Km do local do crime, com que este se desculpou, na altura, não o exime, tal como não são suficientes para eximir Nino de responsabilidades). Que o complexado ex-comandante do PAIGC e ex-presidente de Cabo Verde continue a defender o indefensável torna-o especialmente suspeito no caso... Que terrível segredo terá, por essa altura, descoberto José Maria Neves, a ponto de se desbocar pública e desalmadamente (como, aliás, é seu costume)? Claro que, como também é costume, veio depois desdizer a sua impulsividade. Mas ficaram os indícios.

Quanto à tese de Daniel Santos, que referes, não tem fundamento a sua apresentação nesses moldes. Sekou Touré, em perda de velocidade e invejoso de ter perdido o protagonismo africanista para Cabral, apoiou sem dúvida claramente a conspiração para o assassinar, mesmo se depois mudou «inexplicavelmente» de atitude. No entanto, dizer que foi ele o mandante ou autor moral é esticar demais a corda. Tal como a PIDE, que não tinha qualquer poder para infiltrar o PAIGC, também Sekou Touré não tinha esse poder, pois Amílcar Cabral dotara o Partido de uma forte e eficaz orgânica: mais depressa tinha, em Conacri, o Partido de Cabral, poder militar suficiente para depor Touré; Manecas e Luís Cabral viriam mesmo a afirmar posteriormente que, em Novembro de 1970, Touré ficara a dever ao PAIGC a sua manutenção no poder.

Não estamos a falar sequer dos executantes, mas de todo o «caldo» mental que antecedeu o facto. Cabral pressentira de onde viria o perigo: dos seus próximos. Quem era o «enfant terrible» da Frente Sul? Mais que o seu titular, Pedro Pires, brilhava o grande comandante Kabi. Ora, o que animava os conspiradores contra Cabral? Uma retórica anti-intelectual de dunus di tchon. Reconhece-se o modus operandi que viria a repetir-se em fins de 1980... Por que razão tanta pressa em fuzilar todos aqueles que, de perto ou de longe, tinham convivido com os envolvidos? (para não falar da caça às bruxas que se seguiu)... Como acreditar que um punhado de militantes duvidosos (que tinham estado presos juntos na Prisão do Partido pouco tempo antes) tenha tido a liberdade para o executar, sem cobertura ou instigação superior?

O assunto continua a ser melindroso. Há uns tempos, em Coimbra, quando tive oportunidade para conhecer e trocar ideias com Julião Sousa Soares, tal como relatei aqui no blog, confrontei-o com a tese do envolvimento de Nino Vieira (apoiando-se em medíocres, conscientes de que nunca seriam promovidos com Cabral), que o erudito académico não quis confirmar, sem que a tivesse, igualmente, infirmado. Tal como o próprio Cabral, também Osvaldo Lopes da Silva afirma ter tido o pressentimento da sua morte: seria interessante que contribuísse para a história e ajudasse a esclarecer o processo, contando friamente muitas coisas que sabe, que não são do domínio público.

Já começa a ser tempo de os guineenses reconhecerem que foram eles próprios que mataram o pai da nação; que o veneno lhes vem de dentro; de condenarem esse unanimismo doentio disfarçado de unidade, promovido por aqueles que traíram Cabral: três quartos dos militantes que se encontravam em Conacri estavam ao corrente da conspiração; o próprio irmão de Amílcar desempenha um papel duvidoso e Nino arranja forma de matar o próprio primo, para confundir as pistas... Osvaldo criticava Amílcar pela frente e não nas costas: ainda hoje serve de bode expiatório ideal, como se pode entender das declarações de Pedro Pires na Cidade da Praia, no dia exacto em que se lembravam 40 anos da sua morte, cujo referência, caro irmão do Bambaram di Padida, partilhaste; sugiro que leias com atenção a versão na íntegra, aqui.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Donas do chão

Se o crioulo tivesse feminino, este seria um título mais adequado para o artigo publicado nos Intelectuais Balantas sobre Dona (nha) Bibiana. O seu caso não é de forma algum único.

Para além do papel que desempenharam os judeus (comprando doações ou arrendando tratos), os negócios da Guiné (não resisto a brincar com o assunto: que já incluiam droga, uma vez que uma parte importante era cola, muito apreciada pelos mandingas) desde cedo atraíram a atenção dos portugueses, sendo latente e duradouro o conflito entre uma coroa monopolizante (apoiada numa nobreza comensal) e a livre iniciativa dos «lançados», os portugueses metidos pela terra em contacto com os seus habitantes.

Desde Dom João II que foi necessário tomar providências, sob severas penas, para regular o tráfico, pois o poderio financeiro judeu (em Portugal, pois os seus cabedais ainda não tinham emigrado para a Holanda), ao amealhar em Lisboa toda a moeda local (pequenas conchas) estava a provocar um efeito inflaccionário no trato, encarecendo todos os géneros. Mas é o fanatismo de Dom Manuel (chegou a dar ordem de assassinato e confisco contra os mercadores portugueses, em 1517, criticando-lhes o entendimento e a miscigenação com os «pretos»), que atrofiou aquela que poderia ter sido uma experiência colonial diferente. O que se vem a entender, pela leitura dos documentos, ao longo dos séculos seguintes, como o confessam os historiadores do século XIX, é que o poder colonial português, na Guiné-Bissau, nunca existiu propriamente para além do alcance do canhão das suas poucas fortalezas, só se alterando ligeiramente o cenário graças aos esforços de Honório Barreto.

No texto já citado sobre Bibiana, é revelador, não só o espanto revelado pelos franceses em torno do papel de relevo desempenhado junto de Lisboa por tais personagens, como o facto de reconhecerem que se trata de um «pays», com as suas regras próprias, só sendo tolerados os portugueses, porque o comércio que faziam interessava aos seus habitantes. Mas voltando ao assunto que me faz escrever: Iva Cabral escreveu um interessantíssimo texto sobre o papel das mulheres nesses tempos, reconhecendo a sua importância, apontando vários documentos interessantes, como um de 1572, no qual são legitimadas e habilitadas como herdeiras duas irmãs filhas de escrava, sendo reveladora a mentalidade do português que, embora admita que seja possível isso acontecer, associa o património ao pai branco, que deseja para os netos da filha, que, por sua vez, concebera de uma escrava.

Chegando então ao ponto que aqui me trouxe: Iva Cabral aponta o exemplo do poder de Joana Coelha, fundadora do Convento dos Franciscanos na antiga capital hoje Cidade Velha, a qual, na ausência de herdeiros, pôde dispôr do seu património como bem entendeu. Julgo que Iva Cabral desconhece um facto importante, relacionado com a história da minha cidade: Joana Coelha fez-se enterrar em lugar de destaque, com obrigação de missas perpétuas, na Capela Mor da Igreja do Hospital de Jesus Cristo em Santarém, onde vivo, graças às importantes doações que fez e rendas com que o dotou, inscrevendo nos seus «títulos» o comércio dos rios de Cacheu e de São Domingos! Para além de ascendência guineense (em Cabo Verde), estou a investigar, relacionando o património, algumas gerações para trás, uma Francisca Coelha, filha de João Coelho e Filipa Baptista (a qual introduz uma costela judaica no assunto, por via de seu avô materno, que comprara a ilha de Maio ao donatário original).

Suspeito que a própria transformação do nome de família (Coelho), para o feminimo, é não só um reconhecimento passivo de «bastardia» (judaica, no primeiro caso, racial, no segundo), mas também e sobretudo, uma afirmação activa da sua identidade e poder, como mulheres.

Prometo, mal consiga arranjar uma boa máquina, colocar aqui uma foto da lápide e do seu enquadramento, e dar conta de algumas reflexões e especulações suplementares sobre o caso.