Se o crioulo tivesse feminino, este seria um título mais adequado para o artigo publicado nos Intelectuais Balantas sobre Dona (nha) Bibiana. O seu caso não é de forma algum único.
Para além do papel que desempenharam os judeus (comprando doações ou arrendando tratos), os negócios da Guiné (não resisto a brincar com o assunto: que já incluiam droga, uma vez que uma parte importante era cola, muito apreciada pelos mandingas) desde cedo atraíram a atenção dos portugueses, sendo latente e duradouro o conflito entre uma coroa monopolizante (apoiada numa nobreza comensal) e a livre iniciativa dos «lançados», os portugueses metidos pela terra em contacto com os seus habitantes.
Desde Dom João II que foi necessário tomar providências, sob severas penas, para regular o tráfico, pois o poderio financeiro judeu (em Portugal, pois os seus cabedais ainda não tinham emigrado para a Holanda), ao amealhar em Lisboa toda a moeda local (pequenas conchas) estava a provocar um efeito inflaccionário no trato, encarecendo todos os géneros. Mas é o fanatismo de Dom Manuel (chegou a dar ordem de assassinato e confisco contra os mercadores portugueses, em 1517, criticando-lhes o entendimento e a miscigenação com os «pretos»), que atrofiou aquela que poderia ter sido uma experiência colonial diferente. O que se vem a entender, pela leitura dos documentos, ao longo dos séculos seguintes, como o confessam os historiadores do século XIX, é que o poder colonial português, na Guiné-Bissau, nunca existiu propriamente para além do alcance do canhão das suas poucas fortalezas, só se alterando ligeiramente o cenário graças aos esforços de Honório Barreto.
No texto já citado sobre Bibiana, é revelador, não só o espanto revelado pelos franceses em torno do papel de relevo desempenhado junto de Lisboa por tais personagens, como o facto de reconhecerem que se trata de um «pays», com as suas regras próprias, só sendo tolerados os portugueses, porque o comércio que faziam interessava aos seus habitantes. Mas voltando ao assunto que me faz escrever: Iva Cabral escreveu um interessantíssimo texto sobre o papel das mulheres nesses tempos, reconhecendo a sua importância, apontando vários documentos interessantes, como um de 1572, no qual são legitimadas e habilitadas como herdeiras duas irmãs filhas de escrava, sendo reveladora a mentalidade do português que, embora admita que seja possível isso acontecer, associa o património ao pai branco, que deseja para os netos da filha, que, por sua vez, concebera de uma escrava.
Chegando então ao ponto que aqui me trouxe: Iva Cabral aponta o exemplo do poder de Joana Coelha, fundadora do Convento dos Franciscanos na antiga capital hoje Cidade Velha, a qual, na ausência de herdeiros, pôde dispôr do seu património como bem entendeu. Julgo que Iva Cabral desconhece um facto importante, relacionado com a história da minha cidade: Joana Coelha fez-se enterrar em lugar de destaque, com obrigação de missas perpétuas, na Capela Mor da Igreja do Hospital de Jesus Cristo em Santarém, onde vivo, graças às importantes doações que fez e rendas com que o dotou, inscrevendo nos seus «títulos» o comércio dos rios de Cacheu e de São Domingos! Para além de ascendência guineense (em Cabo Verde), estou a investigar, relacionando o património, algumas gerações para trás, uma Francisca Coelha, filha de João Coelho e Filipa Baptista (a qual introduz uma costela judaica no assunto, por via de seu avô materno, que comprara a ilha de Maio ao donatário original).
Suspeito que a própria transformação do nome de família (Coelho), para o feminimo, é não só um reconhecimento passivo de «bastardia» (judaica, no primeiro caso, racial, no segundo), mas também e sobretudo, uma afirmação activa da sua identidade e poder, como mulheres.
Prometo, mal consiga arranjar uma boa máquina, colocar aqui uma foto da lápide e do seu enquadramento, e dar conta de algumas reflexões e especulações suplementares sobre o caso.
Interessante o artigo do IBD, que já conhecia. Só lamento que não citem a fonte (Philip J. Havik. A DINÂMICA DAS RELAÇÕES DE GÊNERO E PARENTESCO NUM CONTEXTO COMERCIAL: UM BALANÇO COMPARATIVO DA PRODUÇÃO HISTÓRICA SOBRE A REGIÃO DA GUINÉ-BISSAU SÉCULOS XVII E XIX. Afro-Ásia, número 027, Universidade Federal da Bahia, Bahía, Brasil, pp. 79-120, disponível na integra aqui: http://www.afroasia.ufba.br/pdf/27_2_dinamica.pdf). É um dos problemas da internet...
ResponderEliminarSó estes últimos anos é que em Portugal se está divulgando um pouco do que foram os 500 anos do mundo lusotropical, que foi a nossa vivência e sobrevivência.
ResponderEliminarTalvez devido à internet e à democracia que não existiam nos 490 anos anteriores, certos conhecimentos não chegavam às massas.
É que há coisas que custavam entender como era possível.
Falta ainda tana coisa sair cá para fora!