domingo, 7 de setembro de 2014

A morte de Cabral

Caro irmão do Bambaram di Padida:

O teu apego, como aliás, o de muita gente (sobretudo em Cabo Verde), em relação à responsabilidade dos portugueses na morte de Cabral, como se nota no meio da recolha de informação que publicaste recentemente sobre o assunto, está desactualizado. Permite-me uma dica.

Muitos são os estudiosos da vida de Cabral, como dizes, que apresentaram as suas versões, a que se pode acrescentar a investigação de Joaquim Furtado para documentário da RTP.

No entanto, há alguns pontos assentes.

O papel da polícia política - serviços secretos portugueses foi mínimo, configurando um envolvimento de rotina, muito vago e inconsistente. Se os portugueses foram de imediato acusados, por razões óbvias, agravadas pela lembrança do raid sobre Conacri, pouco mais de dois anos antes (o qual, entre outros objectivos, se destinava a capturar Cabral vivo - eram essas as ordens de Spínola, que queria integrá-lo em lugar de destaque no seu Governo - já Sekou Touré era indiferente ser vivo ou morto), o facto é que, precisamente nessa operação, segundo os militares, tudo, mas mesmo tudo aquilo que dependia da PIDE, correu mal. Tanto as informações, como os pretensos «aliados», tudo se revelou uma farsa. Nunca a PIDE se conseguiu infiltrar de facto no PAIGC. Spínola, por seu lado, é insuspeito, pois alimentava a ideia de se vir a encontrar pessoalmente com Amílcar Cabral para negociar... (Marcelo Caetano, ao proibir-lho, deu aso a uma extensa lista de material de guerra exigido para defender o «indefensável» e ao afastamento do General, para a Metrópole).

O mesmo Spínola, quando lhe retalharam os Majores envolvidos em negociações em chão manjaco (meio ano antes do raid de Conacri, que, desse ponto de vista, seria uma «vingança»), terá suspeitado (como disse em entrevista ao Expresso quase um quarto de século depois), que as ordens teriam vindo de Pedro Pires e do «grupo moscovita» de Nino Vieira. Insistir na versão que fez dos portugueses o bode expiatório do assassinato de Cabral é não apenas um erro histórico crasso, mas continuar a esquecer os verdadeiros culpados, altos dirigentes do PAIGC...

Como acusou em 2011 e com razão, José Maria Neves, visando Pedro Pires (os 400Km do local do crime, com que este se desculpou, na altura, não o exime, tal como não são suficientes para eximir Nino de responsabilidades). Que o complexado ex-comandante do PAIGC e ex-presidente de Cabo Verde continue a defender o indefensável torna-o especialmente suspeito no caso... Que terrível segredo terá, por essa altura, descoberto José Maria Neves, a ponto de se desbocar pública e desalmadamente (como, aliás, é seu costume)? Claro que, como também é costume, veio depois desdizer a sua impulsividade. Mas ficaram os indícios.

Quanto à tese de Daniel Santos, que referes, não tem fundamento a sua apresentação nesses moldes. Sekou Touré, em perda de velocidade e invejoso de ter perdido o protagonismo africanista para Cabral, apoiou sem dúvida claramente a conspiração para o assassinar, mesmo se depois mudou «inexplicavelmente» de atitude. No entanto, dizer que foi ele o mandante ou autor moral é esticar demais a corda. Tal como a PIDE, que não tinha qualquer poder para infiltrar o PAIGC, também Sekou Touré não tinha esse poder, pois Amílcar Cabral dotara o Partido de uma forte e eficaz orgânica: mais depressa tinha, em Conacri, o Partido de Cabral, poder militar suficiente para depor Touré; Manecas e Luís Cabral viriam mesmo a afirmar posteriormente que, em Novembro de 1970, Touré ficara a dever ao PAIGC a sua manutenção no poder.

Não estamos a falar sequer dos executantes, mas de todo o «caldo» mental que antecedeu o facto. Cabral pressentira de onde viria o perigo: dos seus próximos. Quem era o «enfant terrible» da Frente Sul? Mais que o seu titular, Pedro Pires, brilhava o grande comandante Kabi. Ora, o que animava os conspiradores contra Cabral? Uma retórica anti-intelectual de dunus di tchon. Reconhece-se o modus operandi que viria a repetir-se em fins de 1980... Por que razão tanta pressa em fuzilar todos aqueles que, de perto ou de longe, tinham convivido com os envolvidos? (para não falar da caça às bruxas que se seguiu)... Como acreditar que um punhado de militantes duvidosos (que tinham estado presos juntos na Prisão do Partido pouco tempo antes) tenha tido a liberdade para o executar, sem cobertura ou instigação superior?

O assunto continua a ser melindroso. Há uns tempos, em Coimbra, quando tive oportunidade para conhecer e trocar ideias com Julião Sousa Soares, tal como relatei aqui no blog, confrontei-o com a tese do envolvimento de Nino Vieira (apoiando-se em medíocres, conscientes de que nunca seriam promovidos com Cabral), que o erudito académico não quis confirmar, sem que a tivesse, igualmente, infirmado. Tal como o próprio Cabral, também Osvaldo Lopes da Silva afirma ter tido o pressentimento da sua morte: seria interessante que contribuísse para a história e ajudasse a esclarecer o processo, contando friamente muitas coisas que sabe, que não são do domínio público.

Já começa a ser tempo de os guineenses reconhecerem que foram eles próprios que mataram o pai da nação; que o veneno lhes vem de dentro; de condenarem esse unanimismo doentio disfarçado de unidade, promovido por aqueles que traíram Cabral: três quartos dos militantes que se encontravam em Conacri estavam ao corrente da conspiração; o próprio irmão de Amílcar desempenha um papel duvidoso e Nino arranja forma de matar o próprio primo, para confundir as pistas... Osvaldo criticava Amílcar pela frente e não nas costas: ainda hoje serve de bode expiatório ideal, como se pode entender das declarações de Pedro Pires na Cidade da Praia, no dia exacto em que se lembravam 40 anos da sua morte, cujo referência, caro irmão do Bambaram di Padida, partilhaste; sugiro que leias com atenção a versão na íntegra, aqui.

6 comentários:

  1. Ver video onde Pedro Pires, manifestamente comprometido, argumenta que «estava longe»...

    http://rd3.videos.sapo.pt/rzswyKLytJQrvgYFiqiz

    Por falar na sua zona, seria interessante apurar em que circunstâncias se deu a operação de fuzileiros que matou Titina Silá na cambança do rio... Luís Graça, que já demonstrou a sua curiosidade sobre o assunto no seu blog, poderia tentar averiguar, pois é algo que interessa à História. Foi uma operação de rotina? Ou foi alguma «informação»?

    Terá Titina sido a primeira a morrer, por saber demais (nunca se calaria), às ordens de alguns «altos dirigentes do PAIGC»?

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  2. Pedro Rogério Delgado (Advogado)7 de setembro de 2014 às 22:00

    Pedro Pires: As consequências da sua liderança no capítulo da violação dos direitos humanos.

    Data da edição: 28/04/2014 @ 11:58:28

    Sobre Pedro Pires recaem, como ex-Primeiro-Ministro da I República, fundadas suspeitas de ter sido autor intelectual pelo assassinato do Dr. Renato Cardoso por CUMPLICIDADE, obviamente, que o caso deverá ser levado a sério, e não como arremesso em campanhas eleitorais. Recorde-se que, aquando da campanha eleitoral para as eleições presidenciais de 2011, o actual Primeiro Ministro, Dr. José Maria Neves, havia dito que Amílcar Cabral foi assassinado por seus camaradas por causa da “intriga política”. O quer dizer, há uma verdade por detrás de tudo isso, face à máxima de que NÂO HÁ FUMO SEM FOGO.

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  3. Retirado do Jornal «O Ponto» de princípios de Dezembro de 1980

    https://www.facebook.com/Bcac4512/posts/10151777397378921

    Conclui o artigo que

    «O golpe de 14 de Novembro de 1980 não é mais do que a continuação do golpe de 20 de Janeiro de 1973. Quer um quer outro destinavam-se a levar ao poder um homem: NINO.»

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  4. Confissão de Pedro Pires

    «Poderia até ter-se verificado uma maior afinidade ideológica e comportamental entre os cabo-verdianos e Amílcar Cabral, o que não deixaria de ser um fator para uma maior aproximação»

    20 de Janeiro de 2013

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  5. José Manuel Barroso (1997): «Entretanto, depois do jantar, corre a notícia [do assassinato], e depois, o general [Spínola], a passear nos corredores do palácio, tem uma longa conversa comigo em que afirma, com uma convicção que me pareceu totalmente sincera, o facto do assassinato do Amílcar criar ainda mais problemas no diálogo com o PAIGC na medida em que, na convicção dele, o Amílcar era com quem seria possível dialogar, porque estava muito mais próximo de Portugal, das teses portuguesas, etc.

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  6. Seria igualmente interessante, uma vez que um dos envolvidos, M'Bana Cabra, ainda está vivo, tentar apurar quem exorbitou eventuais orientações de Amílcar (e ordens de Luís de Cabral, que terá trocado certas voltas) fuzilando à queima-roupa e com requintes de malvadez, sete emissários desarmados. Esse também parece um bom indício da mesma conspiração: a opção pela barbárie. Tal como se passou depois com Cabral, porque não «apanhar à mão» os visados? Para quê enchê-los de chumbo? Essa «cultura» expedita viria a inquinar definitiva e estruturalmente o ambiente político, até 2012; é uma catarse que se impõe, tentar dissipar essas nebulosas históricas, chegando a uma versão mais ou menos científica e consensual, livre de propagandas, retóricas e paixões.

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