sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Emburcar pelos olhos


A maravilhosa língua portuguesa, tal como os portugueses, sofre (na opinião de Fernando Pessoa, 7ze acha que aufere) de excesso de imaginação. Estou a pensar no provérbio "emprenhar pelos ouvidos", que foi criado para combater os boatos (para os mais jovens: "fakes") e promover a saudável cultura (não, não era só entre jornalistas) da confirmação de mexericos ("fact checking": para os jovens alienados). Experimentei traduzir no Google para inglês (= get pregnant through the ears) e para francês (= tomber enceinte par les oreilles): ou seja, as 3 singelas palavrinhas passam a 5, perdendo metade da piada (aconselho a não utilizar como tradução literal, pois pode ser levado para o piropo pornográfico por esses bárbaros e incultos estrangeiros - e criminalizado).

Magnificando a proverbial estupidez da direita portuguesa (que anda agora a apanhar bonés dos idiotas do Chega, em vez de apresentar projectos próprios), preferem entregar o ouro ao bandido? Depois queixem-se... À estupidez, que até poderia ser benigna, junta-se o provincianismo, copiando lei francesa com mais de duas décadas. Em clara violação da Constituição, aliás, tanto em termos de discriminação de género, como ofendendo a liberdade religiosa, supostamente garantida pelo Estado laico. Obviamente que a proibição é perniciosa. A sua eficácia é não só tendencialmente nula, como moralmente negativa: tão contra-producente quanto as críticas do Bloco de Esquerda ao Chega (tão auto-destrutivas que resultaram na respectiva transferência de votos).

Até poderiam invocar que aqui o fenómeno é recente, ao contrário de em França. Mas nesse caso deveriam questionar-se por que razão, em Inglaterra, onde a intensidade migratória é contemporânea de além Mancha, preferiram até hoje abster-se de legislar sobre o assunto. Fazem lembrar o célebre dichote de Bismark quando insinuou ser estúpido quem aprende com a experiência própria, se o puder fazer pela dos outros: foram estudar os problemas que encontrou a lei francesa? Para poupar pormenores nas nuances, lembro só que ainda há dois anos atrás o Ministro da Educação francês veio proibir também as abaias. Vamos discutir indumentária alheia? Cada folião sua máscara. Valha-nos a excepção do entrudo, previsto sob a vaga designação de entretenimento.

Se um paneleiro vestisse uma burca e fosse para o Intendente ou para a Praça do Império, seria coimável? Não, pois burca é para mulheres (biologicamente falando, claro, para não ofender os mais sensíveis). Uma lei despoletada, desenhada e anunciada para proibir uma palavra estrangeira (mesmo não explicitamente referida? e neste caso, nem seria ad hominem mas ad mulierem). Que raio de espírito do legislador. O reconhecimento facial em espaços públicos, não parece mal, mas nunca com estas motivações. Com tantas excepções, que até as condições climáticas (invocando smog urbano ou poeira) servem? Até o "sempre que tal decorra de disposição legal que o permita" (para incluir o COVID) saiu mal, pois não era simplesmente tolerado, mas imposto à força.

Lembro-me bem, quando comecei a usar boné, ainda em adolescente, dos raspanetes que levei quando entrava em cafés e me esquecia de o tirar: passava por mal-educado. Um honesto mas distraído cowboy (ou bullwoman, que também as houve - preservando assim a igualdade de género e evitando ofender os/as mais susceptíveis) do faroeste que tentasse entrar de cara tapada no saloon, também não seria muito bem recebido, mas se fosse no banco, não voltaria decerto a sair pelas botas. Banalizar o anonimato em público facilita o crime: se não se notou durante a pandemia deve ter sido por falta de imaginação e sentido de oportunidade da bandidagem: contam as más línguas que Kumba Yalá teria fugido de Bissau, no 7 de Junho, graças a esse rocambolesco expediente...

Contudo, apesar do referido "fait divers", a burca nunca pegou em Bissau, onde há dois terços de muçulmanos. Ultimamente, até se podem ver alguns casos isolados, mas tudo estrangeirada. As pessoas acham simplesmente ridículo. A cultura é bem mais poderosa que qualquer lei. Agora anunciamos fraqueza em letra de lei? Há meio século as mulheres em Teerão usavam mini-saia e há pouco mais as mulheres portuguesas tinham de usar véu na missa. A mais famosa iraniana na mesquita de Lisboa acha mesmo que uma mulher de burca pode ser bem mais provocadora que uma moça descascada (e de certeza mais que uma sueca nudista na praia). É no acto (de despir) que está a piada. Piada obsoleta ironizava que a única mulher mais bonita nua que vestida era Madonna (por vestir mal).


PS1 Como, ao contrário do quimar, a burca se trata de uma única peça de roupa, poderá o polícia abordar pedagogicamente a "perturbadora", sugerindo-lhe livrar-se do objecto da ofensa? Não, pois seria fomentar outra ofensa, de atentado ao pudor!

PS2 Já agora, informa-se o hamburger que tal embrulho vem do Afeganistão e não do Bangladesh.

PS3 Uma vez, tive um pequeno atrito com um aluno, na primeira aula. Entrou de óculos escuros e não os tirou. Perguntei-lhe se tinham graduação... meio confundido, meio vaidoso por a manifesta provocação ter sido notada, respondeu que não. Ordenei-lhe então que os tirasse, por desadequados, uma vez que não havia exposição ao sol na sala. Respondeu que me via muito bem. Repliquei que o problema não era ele ver-me a mim, mas eu vê-lo a ele (e como a menina era importante). 

PS4 Qual o oposto de uma muçulmana de burca na praia portuguesa? Uma nudista sueca de óculos opacamente escuros! Venha o diabo e escolha...

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