sábado, 31 de outubro de 2020

Reader's Digest

Referimo-nos ontem a uma certa desinformação, no seio da sociedade guineense (apesar de algumas tentativas para lançar o debate), quanto ao acordo de cooperação com o Senegal, o qual foi um logro em que caiu Nino na sequência dos sucessivos desaires sofridos no processo internacional de definição de fronteiras marítimas (aliás ainda por concluir) e engodado por aquilo que se supunha, à época, serem promissoras e importantes prospectivas do lado senegalês.

Nesse sentido, preparámos um pequeno ponto da situação, que pretende resumir o actual status quo jurídico, para que os guineenses possam compreender melhor aquilo que se encontra em jogo. Como uma imagem vale mais que mil palavras, optámos por uma representação cartográfica, com base num Atlas recentemente publicado, ao qual acrescentámos as informações mais relevantes para o caso que nos interessa, propondo ao leitor que acompanhe no mapa as referências.

Tudo começa em 1958, com prospecções desenvolvidas pelos franceses da Total, do lado senegalês, e da companhia americana Exxon, do lado português, que indiciaram a presença de petróleo. Note-se que os franceses, perante a óbvia aproximação das independências resultantes do referendo promovido pelo General De Gaulle, associado ao advento da V República, estavam estrategicamente interessados no inventário de recursos, cuja exploração pretendiam partilhar.

Note-se igualmente que, no mesmo momento e face à intenção francesa de conceder a independência às suas colónias africanas num novo quadro de cooperação (ou de exploração neo-colonial), Portugal se encontrava internacionalmente isolado, perante a opção de reconverter o seu império sob novas roupagens de províncias ultramarinas. Salazar precisava desesperadamente de garantir, não só o apoio diplomático francês, nem que dissimulado, mas também o militar.

É neste contexto que, através de simples troca de notas diplomáticas datadas de 25 de Abril de 1960, Salazar vai fazer um presente territorial aos franceses, aceitando o azimute 240, centrado em Cabo Roxo, para a partilha do fundo do mar guineense. Parece óbvio que a discrição do Presidente do Conselho e o carácter claramente desfavorável se prendeu com contra-partidas secretas, nomeadamente ao nível do fornecimento de equipamento militar, violando o boicote.

Com a independência, colocou-se o problema da definição de fronteiras marítimas, já que as terrestres se encontravam delimitadas desde o final do século XIX, consequência do Tratado de Berlim. Para evitar a eclosão de disputas territoriais com a independência das colónias europeias, estabeleceu-se como critério absoluto o respeito pela intangibilidade dessas fronteiras, conceito recentemente abalado de forma flagrante pela secessão do Sudão do Sul e outros casos.

A tardia independência das colónias portuguesas, fez com que este problema só fosse levantado com a reivindicação, por parte do novo Estado da Guiné-Bissau, do paralelo correspondente ao azimute 270, para fronteira marítima. Essa linha encontra-se representada a vermelho no mapa. Era uma reivindicação justa, atendendo à configuração da Gâmbia, e que a costa só abandona a configuração longitudinal e começa a inflectir para sudeste a partir de Cabo Roxo.

Por essa altura, os limites marítimos restringiam-se às 12 milhas náuticas. Note-se contudo a grande evolução sofrida pelo Direito do Mar, nas últimas quatro décadas, nomeadamente desde a convenção de Montego Bay, inclinando-se para a extensão da exclusividade das zonas económicas associadas ao mar territorial, com base no critério da profundidade e origem sedimentar da plataforma continental. As duas plataformas em causa na zona são representadas por círculos.

O referido Atlas, que nos serve de base, resulta de consultas com várias instâncias, mas, para o caso que nos interessa, parece ter enfileirado com as teses franco-senegalesas, que referem "a" plataforma "casamançaise-bissau-guinéènne". Ora esta expressão é um claro silogismo, que pretende englobar dois sistemas de amplitude muito diversa. A plataforma bissau-guineense é muito superior à de Casamança, sendo esta última claramente tributária da primeira.

Até 1977, vigorou informal e usualmente a reivindicação original da Guiné-Bissau. Contudo, nessa data, um investigador senegalês esteve em Portugal a consultar os arquivos e descobriu a troca de notas entre Salazar e Charles de Gaulle, das quais tirou cópias e levou para o seu país. Estas viriam a servir para a contestação das pretensões guineenses, passando o Senegal, a partir dessa data, a reivindicar o respectivo azimute, o 240, como delimitação da fronteira.

Saltando sobre a questão do litígio fronteiriço (já suficientemente documentado nas suas peripécias pelo mano Didinho), a que esta situação deu origem, em que a Guiné-Bissau avançou sem a devida preparação jurídica e fundamentação técnica, importa apenas lembrar, para aquilo que nos interessa, que ambos os países acabaram por recorrer consensualmente a uma mediação internacional (não era novidade na história do território), já com Nino Vieira como presidente.

A tese defendida pelo Senegal assentava no proto-acordo de 25 de Abril de 1960, em conexão com o sacro-santo carácter de intangibilidade das fronteiras coloniais. Assinale-se, contudo, um pequeno pormenor, que escapou à parte guineense: o Senegal ainda hoje continua a comemorar a sua independência a 4 de Abril. Essa incoerência retira em bloco toda a credibilidade à argumentação senegalesa: Paris já não tinha legitimidade para dispor desses recursos.

A incompetência técnica da parte guineense na fase processual acabou todavia por redundar numa arbitragem desfavorável. Contudo, para além da declaração de voto vencido de um dos três juízes constituindo o tribunal arbitral, há ainda uma importante declaração do juiz presidente, apensa ao veredicto, referindo que a decisão se aplicava exclusivamente às 12 milhas, nada impedindo a Guiné de fazer valer no futuro os seus direitos para além desse limite.

Passado um quarto de século de vigência, chegara o término previsto para o acordo, já com Jomav na presidência. Face ao risco da sua renovação tácita, prevista no texto, o Presidente decidiu, e muito bem, reencetar as negociações, denunciando os seus termos, claramente desfavoráveis e injustos para o país. Foi constituída uma Comissão, incluindo vários advogados e peritos, com origem nas áreas das pescas e do petróleo, os dois sectores explicitamente envolvidos.

Depois de várias rondas negociais, constatou-se a supremacia técnica da delegação guineense, que esmagou literalmente os negociadores senegaleses, provocando grande irritação junto do presidente senegalês Macky Sall. A parte guineense conseguiu fazer prevalecer o entendimento de que o acordo era historicamente localizado e manifestamente desequilibrado, em seu desfavor, levando os senegaleses a admitirem o princípio da renegociação.

Sem entrar nos meandros, refira-se que as perspectivas de descoberta de reservas de petróleo economicamente viáveis se deslocaram, na sequência das explorações empreendidas e da evolução do conhecimento tecnológico, da parte senegalesa para a guineense. Foram rebatidos com sucesso falsos argumentos de suposto financiamento, sendo a delegação senegalesa confrontada com a reversão dos seus argumentos e encostada à parede com ameaça de ruptura.

Efectivamente, a posição guineense era clara e bem sustentada: se, nos tempos em que se julgava que o petróleo estava sobretudo do lado senegalês, podia ser justificável a partilha desproporcionada de 85/15%, justificava-se uma nova redacção, sem prejudicar os interesses senegaleses; conservando o critério, o que simplificaria as coisas, bastaria portanto uma adenda clarificando que o benefício se aplica à parte que encontrar petróleo. Uma proposta honesta.

Na proposta em cima da mesa, o país que encontre petróleo na parte contratada da zona comum, terá direito a 85%, contentando-se a contra-parte com 15%. Macky Sall de alguma forma terá beneficiado da instabilidade política prevalecente no país para conseguir manter as negociações em águas de bacalhau (uma expressão aliás relacionada com o Direito do Mar). Suspendendo as negociações à espera de outra maré, remetia esta para o campo político.

Por esta razão, é ridículo apresentar um cenário de duplicação genérica da percentagem do país como uma vitória do presidente guineense. Depois de a Guiné-Bissau ter sido injustamente espoliada numa decisão arbitral contestada; de ter cedido o território em disputa à AGC, que ficou, quase para todos os efeitos, nas mãos do Senegal (quando o acordo fala em presidência bicéfala rotativa); a actual situação de impasse negocial é inteiramente imputável ao Senegal.

Será realmente de estranhar que o Presidente Macky Sall tenha tido a lata de trazer para Bissau, precisamente na data comemorativa da sua independência unilateral, um acordo para assinar nas condições aparentemente mais vantajosas, de 30/70% a seu favor? Obviamente que se trata de uma confissão de derrota e de uma proposta inaceitável. São biliões (à portuguesa) de dólares em petróleo que estão em causa, para além da má-fé da contra-parte negocial.

A ameaça de ruptura negocial e de recurso às instâncias internacionais, pode assentar em duas linhas argumentativas: uma assenta nos desenvolvimentos do Direito do Mar, em relação à zona económica exclusiva, suportadas pela plataforma continental; outra, na sugestão do eminente juiz presidente do tribunal arbitral, que explicita que a decisão se refere apenas até às 12 milhas (linha a rosa que une os dois círculos), podendo a Guiné-Bissau reivindicar toda a AGC.

Conhecendo que em ambas as alternativas a probabilidade de ganho para a Guiné-Bissau é elevada, seria ingrato e inglório vir a constatar que os guineenses alienaram os direitos dos seus netos no futuro, descontando-os por um prato de feijões hoje. 

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