quarta-feira, 16 de novembro de 2016

A grande farra

Até há bem pouco tempo (exceptuando «assassinatos» pontuais de mentirosos e hipócritas como José Niza) a política portuguesa era tabu, neste blog. No entanto, o descaramento de Lacerda, ao insultar a inteligência dos guineenses, veio alterar as coisas.

O Observador está de parabéns, pela investigação de fundo à crise financeira nacional, especulada pelos medíocres e irresponsáveis «gestores» da banca. Apesar de, inevitavelmente, bastante longo, merece ser lido com toda a atenção este artigo.

Não se trata apenas da banca, mas da falência de um país, sob os olhares coniventes de uma classe política cega, anti-patriótica e corrupta, abusando da inércia e incúria de um povo manso e crédulo, para fazer vingar todo o género de chico-espertices.

Tive a felicidade de ter por Mestre a Leonardo Ferraz de Carvalho, com quem mantive pessoalmente (infelizmente morreu prematuramente, envenenado por esta gentalha!) muitas conversas sobre a realidade deste género de carapaus de corrida.

Não se fartava de avisar, no início dos anos 90 para os perigos da mentalidade de farra que se gerava. Pregava no deserto, como se viu. Apenas o Arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles comentava ou dava feedback, daquilo que publicava no Independente.

Vou contar uma história pessoal, pois julgo que a ocasião o merece. Na viragem do milénio, eu era quadro do INE empenhado numa renovação técnica e tecnológica do Instituto, através de um Gabinete de Estudos e de um Grupo de Trabalho inter-regional.

Tendo tomado o gosto à investigação de todas as áreas, decidi abordar a área financeira, que era uma área tradicionalmente reservada, pela sua sensibilidade política e por ser «apropriada» pelos pseudo-tecnocratas monetaristas do Banco de Portugal & afins.

O que despoletou a minha pesquisa, foi um certo escândalo que se gerara, perante a introdução do euro, ao descobrir que a dívida pública tinha triplicado, em pouco mais de década e meia, desde que a Banca nacionalizada em 1975 começara a ser reprivatizada.

Era a primeira campainha de alarme. As estatísticas regionais, ao permitirem publicar uma maior desagregação geográfica, colocavam a nu muitas verdades e manipulações. Em termos de informação financeira, a banca privada fornecia dados da dívida.

Ora se, grosso modo, o défice público triplicara entre 1985 e 2000, consegui reunir dados que mostravam que a dívida privada aumentara exponencialmente mais. Ou seja: até 1985, a dívida total era a dívida pública. Depois, à pública, era preciso somar a privada.

Cheguei pois à inevitável conclusão de que a banca preparava uma insustentável farra, com a cumplicidade europeia. Estavam a «descontar» já a capacidade de financiamento que uma moeda forte haveria de proporcionar. Uma «aposta» especulativa no Euro.

Se havia uma certa polémica, com as pessoas escandalizadas, face ao discurso «futurista» do Euro e da União Europeia, qual a razão desse triplicar da dívida? Num país habituado às poupanças, à estabilidade monetária do ouro de Salazar...

Os alemães inundavam a banca portuguesa de dinheiro. E do oito passou-se ao oitenta. De um país de poupanças, passou-se, numa geração, a um país crivado de dívidas. Um país rico de gente pobre que se tornou num país pobre de gente «rica».

Os dados permitiam mostrar que a dívida privada era já, por essa altura, cerca de sete vezes a dívida pública, e ninguém parecia prestar qualquer atenção aos dados de base, todos encantados com o canto da sereia, ou melhor da senhora Alemanha euro.

Se a dívida privada era sete vezes a pública, a dívida total não triplicara, multiplicara por 21! (7x3) Claro que me pareceu algo de assustador, mas que deveria ser publicado. Comecei a trabalhar na parte gráfica, produzindo tabelas e gráficos adequados.

Entretanto, para além de outros dissabores, sou chamado à Direcção, pelo Vice, Engenheiro Chambel, eminência parda do sistema, para uma reunião. Dá-me conta que tomara conhecimento do trabalho em curso, que já encaminhara para quem de Direito.

Fiquei muito surpreendido, por saber de um interesse tão actual da Direcção no trabalho desenvolvido, até que, depois de uma conversa descontraída e de «alto nível» de inteligência da situação, me atira com: «tem a noção do que é a confiança sistémica»?

Claro que fiquei logo esclarecido do que me esperava. Tratava-se de esquecer o trabalho e, sobretudo, nem pensar em «transpirar» para fora. Sendo do quadro, estava abrangido pelo «sigilo estatístico». Contestei. Também tinha (supostamente) «autonomia técnica».

Acabariam rapidamente por me colocar na prateleira. Recusei ficar sem funções e revoltei-me contra todas as imposições que considerava ilegítimas. Fui eu próprio a bater com a porta. Os dados eram semi-públicos. Poderia ter publicado o trabalho.

Mas para quê? Farto de ter partilhado o estigma de «profeta da desgraça» lançado sobre Leonardo Ferraz de Carvalho com os seus prudentes avisos, sabia que rapidamente seria desacreditado, e até me tentariam humilhar «pseudo-tecnicamente».

Ou simplesmente ignorariam, já inebriados com os odores da farra em preparação. Não. Não me armaria em «desmancha-prazeres». O tempo confirmou todos os receios, mostrando que o não questionamento nos conduz como ovelhas ao matadouro.

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