sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Contra-ficção fiduciária

Um último artigo, para completar a recente série de reflexão monetária.

E gostaria de começar pela célebre parábola da galinha dos ovos de ouro. Como todos já tiveram oportunidade para constatar nas suas vidas, no ambiente monetário em que estamos imersos, a ganância é o móbil que o dinheiro gera para se multiplicar, constituindo-se num motor da História. O dinheiro representa poder (de compra, claro, mas isso é generalizável...). A ganância é a sede desmesurada desse poder, tal como a gula é o «pecado» associado ao comer, ou a luxúria ao prazer. A partir de um certo ponto, a «apetência pelo lucro» torna-se socialmente patológica e psicologicamente castrante, destruindo o seu próprio objecto, tal Narciso envaidecido. O «símbolo» da riqueza não deve consumir a própria riqueza, destruir a possibilidade de esta se reproduzir natural e sustentavelmente, sob pena de atrofio e regressão...

É de relembrar, neste contexto, a primeira «crise» financeira da Guiné, que se consegue perceber pela análise do decreto de D. João II, mandando aos judeus que devolvessem aos guineenses as «conchinhas» que estes tinham entesourado em Lisboa, a título de dinheiro, proibindo a sua entrada na metrópole. De facto, quando os barcos voltaram aos rios da Guiné, aperceberam-se de um curioso efeito pernicioso: o esgotamento da «massa monetária» em circulação encarecera, paradoxalmente, tudo aquilo que os portugueses compravam.

Numa concepção simplista, pode considerar-se aquele sistema monetário como «primitivo». No entanto, este sistema decerto estava, antes de os portugueses chegarem, num certo equilíbrio, sem grandes alterações na economia e nessa massa monetária, uma vez que o mar apenas produzia uma quantidade limitada por espaço de tempo (perdendo-se, ou, de alguma forma, destruindo-se igualmente algumas pelo caminho) e não haver grande propensão para um entesouramento sistemático, servindo apenas na sua concepção básica de meio de troca e não como capital (como reserva de segurança ou símbolo de poder).

Uma outra história, sobre o mesmo assunto, vem-nos do Brasil, da Baía. Efectivemente, algum espertalhão que passara pelos rios da Guiné, decerto passeando pelas praias do outro lado do Atlântico, descobriu a mesma «conchinha», que lhe tilintou à vista como se fosse dinheiro. É claro que não perdeu tempo e ainda hoje os brasileiros se riem de ter enganado os africanos, pois mandavam para o outro lado «conchinhas» e recebiam, em troca, pessoas! Saltando o aspecto imoral desse trato, que agora nos não ocupa, para nos concentrarmos nas questões monetárias, seria interessante pesquisar se existe algum relato dos termos dessa troca e sua evolução. Será que a introdução de grandes quantidades de moeda, alterando significativamente a massa monetária em circulação, não veio introduzir um forte efeito de inflacção? Nem sempre! Como vimos, já no tempo de D. João II, o raciocínio pode não ser linear.

Mas está na hora de sair da concha e voltar ao dinheiro, que, como mostra esta história, é uma poderosa ficção, não dependendo apenas da sua escassez ou das necessidades reais de troca constituídas, podendo construir-se (ou descontruir-se) na base de expectativas (ou de temores). E aqui, parece-me a propósito relembrar a história de contrafacção de Alves dos Reis (a Waterloo de Salazar). Por ocasião da série televisiva (bem rasca, diga-se de passagem), algumas pessoas defenderam que o falsário poderia ter «mudado a história» e «desenvolvido» Angola (como parecia ser sua intenção, com o fruto do seu «labor»). No entanto, é legítima a mesma questão que para as «conchinhas»: será que essa «hiper-abundância alienígena» de dinheiro não iria aumentar a inflacção e recolocar as coisas em equilíbrio, a preços mais altos? Ou, pelo contrário, poderia de facto ter desenvolvido Angola, acabando por se justificar a si «própria»? Não haveria, a meio desses loucos anos 20, expectativas suficientes de desenvolvimento, que ultrapassassem o conservadorismo fiduciário de Salazar? Nada faz supor o contrário, tornando-se esse simples exercício de imaginação uma crítica implícita às «vistas curtas» de Salazar, em certos domínios.

Esta história de contrafacção lembra-me o meu muito estimado e arrojado professor de Economia Pedro, um ultra-liberal, o meu «Chicago Boy» preferido, como tive ocasião para lhe manifestar pessoalmente, em conversas «monetárias». Na sua opinião, o Banco de Portugal (esta conversa foi ainda no tempo do Escudo, mas conserva a sua actualidade), ou melhor, os bancos centrais, é que eram (e continuam a ser e cada vez mais) os verdadeiros falsificadores, ao reservarem para si o monopólio da emissão de moeda (ainda para mais, desde que deixaram de fazer corresponder aos valores emitidos uma certa quantidade de ouro). Pugnava veementemente Pedro Arroja pela liberdade da emissão de moeda para todos (não só para países, mas para instituições ou mesmo particulares), defendendo a «selecção» natural da moeda (ou seja, que a boa moeda exota a má).


Fala-se hoje muito do perdão parcial da dívida alemã, após a Segunda Guerra mundial. Eu quero lembrar, neste contexto, o período de hiper-inflacção (que os filatelistas e numismatas conhecem bem, designando esse verão louco de 1923 - muito bem retratado no romance de Erich Maria Remarque O Obelisco Negro - pela abreviatura de «infla»). Vergada pelo peso das indemnizações de guerra, o marco perdeu credibilidade, gerando uma espiral de inflacção descontrolada. Nalguns sítios, o dinheiro dos ordenados era simplesmente pago à pazada, a olho. Gerou-se uma economia paralela (aliás, a única «real») de troca de vales. A república de Weimar só conseguiu colocar um travão (o limite, evidentemente, é o céu, os selos em marcos atingiram os «trillionen»! - para ter uma ideia da proliferação de zeros basta olhar para a nota de duzentos milhões) na desvalorização «hipotecando» à moeda bens nacionais. Paradoxalmente, a infla teve efeitos revigorantes na anquilosada economia alemã, que vivia das rendas (que entretanto se volatilizaram), obrigando os alemães a uma saudável e dinâmica iniciativa económica real, da qual ainda hoje beneficiam.

Em Portugal, temos um exemplo parecido de uma redistribuição entre capital e trabalho, que permitiu atenuar os efeitos da crise mundial derivada do choque petrolífero de 1973. E o aumento da procura solvável, longamente reprimida, teve um impacto considerável nesse efeito. Claro que as virtualidades da emissão devem idealmente ser cobertas pelo aumento consistente da respectiva actividade económica, que titulam e fomentam. Descansar sobre os remos, cristalizar, abusar da tipografia, conduz inevitavelmente a correcções em baixa ao seu valor. Mas é igualmente condenável cair no extremo oposto, espartilhando a actividade económica num refluxo de crédito, condenando enormes legiões à inactividade e ao desemprego, enorme desperdício de competências e utilidade social.

O mundo encontra-se perante uma encruzilhada: a falência radical do mito da abundância capitalista, muitos anos alimentado como propaganda em direcção aos muros de Leste, está tornar o globo insuportável, dando origem a uma miríade de conflitos locais, alimentados pela exclusão e por um conceito de «pobreza» ordenado a conservar o status quo num imaginário financeiro em «arrefecimento», em contracção. É toda a mentalidade subjacente ao «bezerro de ouro» que está em causa. Será que a apropriação desenfreada é desejável? E será sustentável? Não haverá outra Ordem Mundial mais adequada, que não fomente conflitos nas margens do sistema? Como questionava Jean Baudrillard, comparando a nossa sociedade monetarizada com a africana: quem serão os verdadeiros pobres? Aqueles, que, sob o signo da prometida abundância, vivem na escassez (aspirando a um standing superior, que se traduz em dinheiro, o qual é sempre pouco e os mantém constantemente insatisfeitos); ou aqueles que, sob o signo da escassez, aqueles que nada têm e vivem na partilha e numa verdadeira abundância, por ela proporcionada?

Enfim, África ensinando a gente, como diria Paulo Freire...

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