Realizou-se na quinta-feira à tarde, em Coimbra, uma mesa redonda organizada pelo professor doutor (o primeiro guineense doutorado pela Universidade de Coimbra) Julião Soares sobre a guerra colonial / de libertação «Os 3 Gs da Guiné: Guidage - Guiledje - Gadamael». O cartaz, moderado pelo professor doutor da mesma Universidade, Luís Torgal, incluía vários oficiais superiores portugueses na reforma, o Tenente-Coronel Sandji Fati (que, por impedimento de última hora, não esteve presente) e o Doutor Osvaldo Lopes da Silva, que dirigiu a flagelação de Guiledje pelo PAIGC.
Conforme declarou o Julião (a quem, depois de ter lido o livro de Cabral, tive o prazer de conhecer pessoalmente nesta ocasião) à RTP, também a mim me parece importante sublinhar a importância do evento, assumindo definitivamente a queda dos tabus. Neste contexto, há igualmente que destacar o papel de destaque que tem vindo a desempenhar o blog de Luís Graça e a reaproximação à Guiné da sua «rede social» Tabanca Grande, incluindo o convívio entre antigos combatentes dos dois lados, patrocinado pela ONG guineense AD, de Carlos Schwarz (Pepito).
Chegou a hora de se fazer história, de forma positiva, como forma de intervenção informada na realidade actual, conforme defendeu Luís Torgal na introdução que fez a esta mesa redonda, que se constituiu como preparatória para um grande evento a organizar em Novembro, no mesmo espírito. No fim do encontro, o mesmo professor viria a fazer uma constatação que me parece bastante relevante: sendo a memória algo de tão selectivo e traiçoeiro, porque razão se teriam afigurado, aos presentes, as memórias da Guiné de forma tão viva e emotiva? Amigos da Guiné...
A primeira apresentação esteve a cargo do Coronel de Paraquedistas José Moura Calheiros, que, mesmo contra as fortes restrições de tempo (e teve o dobro do dos outros participantes, pois esteve em ambos os teatros de operações, Norte e Sul) fez uma brilhante apresentação táctica dos cenários com que se deparou, primeiro em Guidage, no Norte, depois em Gadamael, na sequência do abandono de Guiledje. Recomenda-se a leitura do seu livro, profusamente ilustrado «A última missão» (que consistiu na repatriação dos restos mortais de alguns homens sob o seu comando).
Em relação ao tempo, julgo importante anotar que a mesa redonda duraria quase 7 horas ininterruptas, sem sequer pausa para café, que chegou a ser anunciada, mas não respeitada. Depois do Coronel Calheiros, a palavra passou ao Coronel dos Comandos Raúl Folques, um dos comandantes da operação de Comandos Africanos efectuada sobre uma base do PAIGC, já em território senegalês, para aliviar a pressão sobre Guidage. Por várias vezes o senhor Coronel teve de controlar a sua emoção, para não explodir. Eu, como estava na assistência, virei a cara para o lado e chorei como uma Madalena arrependida.
Um por um, desfiou o rosário dos seus mortos em combate, dos seus mortos às mãos da fúria cega e assassina do PAIGC, para depois se perguntar, quase com raiva: «para quê»? Passados estes anos, para que serviu a guerra? Aos de cá, não! Aos de lá, pelos vistos, ainda menos. É desesperante! A Guiné e Portugal parecem partilhar um destino comum de incompetência dos seus políticos. Numa pequena conversa informal que tive depois com o senhor Coronel, lamentou a «ausência», na mesa redonda, de Salgueiro Maia, com quem conviveu por essa altura em Guidage: se fosse vivo lá estaria, claro.
Em seguida, calhou a vez ao Coronel Coutinho Lima, ainda hoje visivelmente perturbado pelo papel que desempenhou no único abandono de um Quartel durante a guerra colonial. Talvez fosse melhor, para se justificar humanamente, assumir que errou, pelo menos em termos de uma análise exclusivamente militar. Ordenou a retirada tempestiva de um quartel relativamente bem fortificado, para outro onde não existiam as mínimas condições de defesa, expondo os seus homens, para além do desastre moral, à morte às mãos dos guerrilheiros do PAIGC, que, estranhamente (ou não - valeria a pena eliminar esses combatentes «inutilizados»? - eram mais úteis vivos, para desmoralizar o inimigo, que mortos), não explorou a situação.
O livro lançado na Academia Militar, a insistência em justificar-se (fez questão de distribuir o texto fotocopiado por todos os presentes), não me parece que sirva a paz interior que procura. Neste levantar do véu sobre a Guerra Colonial (não estaria a ser justo se me esquecesse de citar o importante papel que desempenhou na televisão Joaquim Furtado), importa não confundir dramas pessoais, com a verdade. Plagiando um blog guineense, a verdade liberta. Valerá a pena querer branquear e apresentar uma má decisão militar (por mais atenuantes que possam ser invocadas), como uma boa decisão humana?
O mal estar de Coutinho Lima assumiu uma manifestação um pouco desadequada: tinha preparado uma pequena encenação, no momento em que lhe é passada a palavra, abandona a sala, criando um momento de suspense (teria tido vergonha? e fugido?); voltando pouco depois trajado de guineense. Pareceu-me uma demonstração deslocada da sua necessidade de aprovação. Abandonei a sala, como fez também o Coronel Folques e mais uma ou duas pessoas. Esta sim, uma verdadeira retirada estratégica.
A desconchavada «palhaçada» foi denunciada na sala, quando tentou «comungar» com um guineense igualmente em trajes tradicionais: saiu humilhado, quem estava ao lado do comando africano, respondeu-lhe: «olhe que ele não era da sua equipa!» Por isso me pareceu deslocado e pouco fiel um pormenor no relato da Lusa, publicado pela agência noticiosa angolana: quando diz que a generalidade os participantes concordaram com Coutinho e Silva, que a retirada foi a decisão mais acertada. Eu estava presente e não me reconheço nessa afirmação. O jornalista chegou ao ponto de afirmar que foi um acto de «ousadia». Enfim...
Para além de ter falado outra vez José Calheiros, mostrando como os paraquedistas que se preparavam para reforçar Guiledje, chegados a Gadamael, conseguiram conter o PAIGC varrendo as redondezas (a mais forte razão o teriam feito em Guiledje), falou o Coronel Ferreira da Silva, que defendeu o quartel com um punhado de homens, mantendo uma presença de ocupação «psicológica»: «íamos disparando um obus de vez em quando para o PAIGC saber que ainda cá estávamos». Num estilo muito popular, lançou «nós fomos a maior geração desde os descobrimentos!» Concordo que, com uma excepção, a mesa era constituída por heróis: «em perigos e guerras esforçados, mais do que prometia a força humana...»
Em seguida, falou o Comandante da Marinha Pedro Lauret. Nesses dias comandava um dispositivo que consistia numa Lancha de Fiscalização Grande (a Orion) e duas Lanchas de Desembarque, com botes de apoio. A sua apresentação fotográfica dos modelos permitiu-lhe uma feliz referência à Lancha Vega, e ao seu Comandante Oliveira e Carmo, herói de outro G, uma década antes. Mas voltando aos Gs da Guiné: a retirada de Guiledje provocou uma grande confusão em Gadamael, que não tinha condições para acolher tanta gente. O PAIGC rapidamente rebateu o seu dispositivo sobre Gadamael, recomeçando a fustigar com redobrada intensidade...
Já desmoralizados, soldados (excepto um punhado respondendo ao comando de Ferreira da Silva e 33 homens da guarnição de artilharia residente) e população fogem para o tarrafo (zona alagada entre marés, onde uma pessoa fica rapidamente enterrada pela cintura), na confluência dos rios Cacine e Cachina. Poderia ter sido uma chacina. Os relatórios eram alarmantes e falavam em soldados completamente «traumatizados», «apáticos». Aparentemente, também o General Spínola ficou traumatizado, teve um ataque de fúria, chamou-lhes «Ratos» e «Cobardes».
No entanto, quando tenta desembarcar no seu Alouette em pleno cenário, como era seu costume, a comitiva de recepção apercebe-se do silvo de um disparo (tinham apurado mais ou menos 18 segundos para o impacto), o oficial só tem tempo para fazer sinal ao piloto do helicóptero, obrigar o General a flectir as pernas (não havia tempo para explicações), levantando este imediatamente voo... no timing previsto ocorreu o impacto, precisamente no local onde tinha estado o heli. A quadrícula estava bem estudada, o PAIGC tinha grandes artilheiros!
O Comandante da Orion, chamado a desempenhar uma missão de transporte dos paraquedistas (que estavam na mata de Cantanhez envolvidos numa caça aos representantes da ONU) para irem reforçar Gadamael, foi com indignação que se apercebeu de uma impensável ordem de Spínola para ninguém ajudar os fugitivos. Chamando os seus subordinados, disse-lhes que estava disposto a não cumprir aquelas ordens e a ir salvar aqueles homens, «nem que fosse de canoa».
Num pequeno momento informal, já depois do fim da mesa redonda, afirmou «Nós, militares, sabemos que certas ordens não são para cumprir». O Marechal Rommel parece-me que foi o único que ousou desafiar a psicopatia de Hitler sem morrer (pelo menos logo de seguida). Em 1940, aquando da guerra que o conduziria como um relâmpago a Paris, depois de cumpridos os melhores cenários operacionais, em Berlim começaram a assustar-se, chegando mesmo a julgar que poderia ser uma armadilha, e deram ordens para parar a ofensiva e consolidar posições. Mas Rommel sabia que a vantagem era precisamente a rapidez fulgurante, precisava sempre de mais gasolina que não lhe vinha de trás e que só podia encontrar mais à frente, se fosse sempre 50Km mais rápido que a propagação das notícias.
Quando se apercebem, em Berlim, que as ordens não estavam a ser cumpridas e que Rommel continuava a avançar em direcção a Paris, o próprio Hitler arranca o microfone das mãos do CEMFA e começa a vociferar com Rommel, que tinha o seu QG reunido a assistir aquilo tudo. Muito calmamente, saca da sua pistola Luger, dá um tiro no receptor, vira-se para os seus homens e diz: «O rádio teve um problema técnico. Como não conseguimos ouvir as últimas ordens, vamos continuar em direcção a Paris. Subam para os vossos tanques.» Outra dessas vezes foi quando, face à iminente queda da África do Norte, recebeu ordens para fuzilar os oficiais ingleses. Não apenas se recusou a cumprir essas ordens, rasgando-as ostensivamente à frente dos seus homens, como ordenou a sua libertação imediata.
O último conferencista, Osvaldo Lopes da Silva, próximo de Amílcar Cabral e de Titina Silá, foi combatente guineense da liberdade da pátria e comandante do assalto do PAIGC a Guiledje. Falou da evolução das estratégias de guerrilha: que começaram por ser de «bate e foge», de forma a obrigar Portugal a distribuir as suas forças pelo território; e que, numa fase mais avançada, passou a ser a de criar «abcessos de fixação» de modo a esgotar o inimigo. Explicou os pormenores tácticos da instalação das baterias no terreno, sua visibilidade e camuflagem, procedimentos de ajustamento do tiro, armas utilizadas e suas características. Lembrou ainda os estágios na China e na URSS e a feroz independência mantida por Cabral nos conflitos entre esses dois países, que o apoiavam. Teve também um triste lamento, de que teve o pressentimento do assassinato de Amílcar Cabral.
A nome da operação 2G do PAIGC (acabaram por ser 3) foi o do seu malogrado líder. É digno de nota que Osvaldo foi quem recebeu a maior ovação de entre os participantes nesta mesa redonda. Homens que se combatiam há 40 anos, reconhecem-se hoje mutuamente, o amor e motivação pela respectiva ideia de pátria que os animava, como também mérito e valentia aos seus adversários. Algumas ideias, que já tinha defendido há pouco tempo, na pequena biografia de Amílcar Cabral que apresentei para a exposição no Xantarim (para a qual contribuiu a minha leitura do excelente livro de Julião Soares), pareceram-me, essas sim, consensuais entre os circunstantes nesta mesa redonda.
Duas das mais importantes parecem-me ser:
1) A de que a introdução no teatro de operações, com sucesso, dos mísseis Terra-Ar SAM7, conhecidos por Strella, desequilibrou definitivamente o já de si frágil status quo no terreno. A força aérea sofre fortes restrições à sua operação, no apoio aproximado ao combate no solo, passando o tecto de actuação das poucas dezenas de metros acima do chão, para altitudes muito maiores, com uma drástica redução da sua eficácia. A guerrilha ganhou em mobilidade, podendo concentrar tropas a seu bel-prazer, com os portugueses pregados ao chão. Ao mesmo tempo, também os helis deixaram de fazer evacuações de feridos (e mortos) em zonas de combate, com grande impacto negativo no moral das tropas.
2) A de que o 25 de Abril se deveu essencialmente a estes 3G. Uma geração de heróis, que não recusou o apelo da pátria, face à iminência e inevitabilidade de uma derrota militar, para poupar o seu exército e o seu país a essa humilhação, fez uma revolução inadiável. O povo português ficou a dever a sua revolução aos guineenses, bem organizados e muito bem comandados, como reconheceu José Calheiros. Ditosas pátrias que tais filhos têm.
No fim da mesa redonda, mal grado o avançado da hora, foi aberto um espaço de debate, no qual intervim lembrando as palavras de Raúl Folques (o senhor Coronel, que estava com a filha e tinha de voltar para Lisboa, já não estava presente) quando disse que os Comandos Africanos eram uma verdadeira «casa» multi-étnica, com elementos de todas as etnias; dentro do mesmo espírito, lembrei um estudo feito sobre o islamismo na Guiné, por Salgueiro Maia, no entusiasmo do seu curso de Antropologia, no qual o mais interessante é que assume natural e implicitamente (e, na minha opinião, sem erro científico) a existência de uma identidade guineense, um maravilhoso caldeamento (o termo foi sugerido pelo Julião, no momento) cultural...
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