segunda-feira, 27 de abril de 2015
Ensinança e Governança
Escrever um tratado é algo exigente, que não se espera de um soberano: um rei manda, presumindo-se que a sua profissão o mantenha assaz ocupado. Um rei como Dom Dinis deixou-nos belos poemas e cantigas. Mas o caso de D. Duarte é diferente. Erudito e possuidor de vasta biblioteca, pouco comum em plena Idade Média, levou a sério a sua vocação literária, que o povo lhe reconheceu sob o cognome de Eloquente. Rei filósofo, projectou duas grandes obras ainda “em seendo Ifante”: o «Leal Conselheiro» e o «Livro da Ensinança de Bem Cavalgar toda sela».
Acede ao trono em 1433, para um curto reinado de cinco anos. Em finais de 1437, o Rei tem pouco mais de 45 anos, quando contrai a peste. Escreve: «Porque a razão e a vontade requerem que cada um traga à perfeição o que bem começa, se por contrários razoáveis não é estorvado, continuarei esta escritura em que passa de quatro anos pouco escrevi, com o propósito e tenção no começo escrita, despedindo-me dela mais brevemente. Que pelos grandes cuidados que me recresceram depois que pela graça de Deus fui feito Rei, poucos tempos me ficam para poder sobre isso cuidar ou escrever, (…) sem estorvar os outros grandes feitos de que sou encarregado.» Nos poucos meses que sente que lhe sobram, com o avanço da doença e o aproximar da morte, o Rei tenta finalizar, de forma talvez mais precipitada do que previsto “despedindo-me dela mais brevemente” tanto uma como outra obra.
A transcrição de um capítulo inteiro do «Leal Conselheiro» para o «Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela», evidencia a ligação, nas duas obras, a um mesmo “propósito e tenção”. Mas que intenção seria esta? No «Leal Conselheiro» as motivações manifestam-se logo no título: trata-se de política. D. Duarte, um século antes daquele que viria a ficar conhecido como fundador da ciência «política», Nicolau Maquiavel, trata do mesmo tema, mas sob uma perspectiva positiva, mais idealista, ao contrário do autor italiano, que aliás se inspiraria (na opinião do famoso Comenius) noutro rei português para a sua obra mais famosa «O Príncipe». As obras de Dom Duarte, embora precursoras nas suas áreas, ainda hoje sofrem do desprezo a que foram votadas pelos próprios portugueses, não aparecendo referenciadas nos grandes dicionários e enciclopédias das respectivas áreas. Talvez Garcia de Resende tivesse razão ao afirmar que, ao contrário dos outros europeus, «os portugueses são mais amigos de fazer do que escrever».
O «Livro da Ensinança de Bem Cavalgar toda sela» é o primeiro Tratado de Equitação. Mas, neste título, não nos deixemos enganar: trata-se bem mais de Ensinança, que propriamente de cavalgar. O próprio D. Duarte repete incansavelmente que muitas das suas considerações psicológicas («considerando o que li no coração do homem») se aplicam não só a «cavalgar, e assy em todallas outras cousas». Rodrigues Lapa, em 1934, em Lições de Literatura Portuguesa (Época Medieval), descreve-o assim: «Há no livro uma parte, que não conseguiu ainda chamar a atenção dos nossos pedagogos, nem o conseguirá jamais, se nos obstinarmos a considerá-lo apenas um compêndio de equitação. É aquela em que o autor nos fala sobre o medo na aprendizagem da disciplina. As suas observações são finas e curiosíssimas e mereciam figurar numa Biblioteca de Educação, em voluminho, com este título: A pedagogia do medo. A nossa literatura não abunda em obras deste género.»
Após breve enquadramento histórico, acerca da legitimidade dinástica, utilizarei o excerto do «Livro da Ensinança de Bem Cavalgar toda sela», dedicado à análise psicológica do medo. Tentarei mostrar, com base nesse texto, como o autor recorre ao par soberania / pedagogia e evidencia particular interesse pela formação dos seus súbditos, tal como aliás seu irmão D. Pedro, que lhe sucedeu na regência, com o objectivo da afirmação de uma relação de legitimidade já não unívoca, como era característica da sua época, mas recíproca, entre mando e mandado.
A legitimidade dinástica
Quando morre D. Fernando, o Formoso, abre-se uma crise dinástica: a rainha Leonor Teles, conhecida por «Flor das Alturas» (aludindo à sua extrema vaidade), ou mais pejorativamente «A aleivosa», era há muito odiada pelo povo, que abominara a forma assumida pelo seu casamento com o Rei. A filha única do casal fora dada em casamento ao Rei de Castela, como consequência de várias derrotas militares. O povo de Lisboa, conduzido por um burguês, revolta-se contra a «pouca vergonha» da viúva, que ainda o marido estava quente já tomara para amante um conde galego: a escolha daquele que haveria de executar o conde Andeiro recairia sobre o Mestre de Avis, filho ilegítimo del-Rei Dom Pedro, criado desde moço pelo Mestre da Ordem de Cristo, como nos conta Fernão Lopes.
Por esta altura a Europa era varrida por revoltas populares, conhecidas por jacqueries, por todo o lado reprimidas a ferro e fogo. A Rainha viúva troca Lisboa por Santarém, e escreve ao genro para a vir ajudar a reprimir os revoltosos e reivindicar o trono para seus «legítimos» herdeiros; a nobreza, obrigada pelos compromissos feudais, apoia o invasor. O destino da revolta parecia traçado. Ridicularizavam-se os partidários do «Messias de Lisboa», frente ao poder do exército castelhano, ladeado pela elite militar portuguesa. O Mestre, depois de nomeado Defensor do Reino é aclamado Rei, tomando por nome João I, ultrapassando outros melhor colocados na ordem de sucessão, como os filhos da Rainha (a título póstumo) Dona Inês. O excesso de confiança castelhano deparou em Aljubarrota com a firmeza da fé de Nuno Álvares Pereira, o Santo Condestável.
D. João I deve o seu reinado à vontade popular do povo de Lisboa e não a herança. Talvez por isso nunca mais tenha voltado a Lisboa durante o seu Reinado: a condição de «bastardo», como alguns lhe chamavam, implicava um certo «deficit». Talvez por isso tenha dado particular atenção a instrumentos de legitimação como a heráldica.
D. João casaria depois com uma nobre inglesa, Dona Filipa de Lencastre, união da qual resultariam oito filhos. O primogénito, D. Afonso, baptizado na igreja das Portas do Sol, em Santarém, viria a morrer em criança. Os irmãos ficaram conhecidos como «a ínclita geração», referindo-se os historiadores ao valor individual de cada um destes príncipes, que marcaram profundamente a História de Portugal. Não resisto a citar Fernando Pessoa, na Mensagem, referindo-se a Dona Filipa: «Que enigma havia em teu seio, que só génios concebia?»
As primeiras décadas do século XV são um momento de afirmação e enriquecimento da língua portuguesa: é originalmente atribuída a D. Pedro a utilização do vocábulo «poesia», numa clara manifestação pré-renascentista. Dos dois infantes que governaram o país conhecem-se duas obras de cada um. De D. Duarte, o «Leal Conselheiro» e o «Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela»; de D. Pedro, a carta de Bruges escrita a seu irmão D. Duarte, precisamente sobre questões de governação e o Livro da «Virtuosa Benfeitoria».
Mas o manuscrito do «Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela» só ficou conhecido na primeira metade do século XIX e está guardado na Biblioteca Nacional de Paris. A obra só viu uma primeira edição tipográfica em 1843, sendo publicada em conjunto com o Leal Conselheiro: apesar do seu inegável interesse, o livro parece ter tido pouca repercussão e publicidade. Seguiu-se, cerca de um século depois, em 1944, uma edição crítica de boa qualidade devida a Joseph Piel com intervenção do editor ao nível da actualização da grafia, ligação/separação de palavras e pontuação, reeditada em 1986.
Não há, nesta obra, referência a qualquer livro do género, exceptuando uma vaga referência ao Livro de Montaria de seu pai, obra de um âmbito totalmente diferente. O próprio autor declara logo de início «E porque não sei de outro que sobre isso geralmente escrevesse, apraz-me por esta ciência primeiro em escrito». Estamos pois perante uma obra completamente original e pioneira, que as modernas enciclopédias continuam obstinada e estranhamente a não reconhecer. A enciclopédia britânica on-line referindo-se à história da equitação: «Naples riding academy in the early 16th century, when Federico Grisone and Giovanni Battista Pignatelli tried to combine classical Greek principles with the requirements of medieval mounted combat. After Xenophon, except for a 14th-century treatise by Ibn Hudhayl, an Arab of Granada, Spain, apparently no literature on riding was produced.»
Ora, segundo o página de José Monteiro Andrade (embora contendo algumas imprecisões e anacronismos, estes não afectam a validade da opinião expressa) D. Duarte há muito tinha reconhecido a mudança de paradigma militar, «as desvantagens guerreiras da equitação à Brida, que utilizava cavalos poderosos e pouco ligeiros, estribos compridos e cavaleiros muito sentados, relativamente à equitação à Gineta, que utilizava estribos mais curtos, que permitia a suspensão do cavaleiro, utilizando cavalos bem mais ligeiros e manejáveis. (…) Revela grande preocupação na mudança de mentalidade no uso do cavalo e na educação do cavaleiro; consciência das vantagens para a segurança do reino da aprendizagem das novas técnicas e da absorção de uma nova mentalidade; antecipação de visão e de métodos relativamente a toda a Europa…»
Psicologia do Medo
A adolescência é um momento de transição e de iniciação: a ansiedade, o medo de falhar, podem tornar-se extremamente inibidores e podem ter várias origens, como a baixa auto-estima, fracassos anteriores, etc…A segunda parte do Livro da Ensinança de Dom Duarte: De ser sem receio, é claramente uma sistematização da psicologia do medo, subdividindo-se em dez capítulos, da página 42 à 56. Na óptica do monarca, o medo de cavalgar constitui um obstáculo psicológico que o aprendiz deve ir ultrapassando. Faz uma análise do problema e dá uma proposta de solução para cada um. Ter consciência do medo e saber dominá-lo é, segundo o soberano, essencial para uma aprendizagem consistente.
Um pequeno resumo desses dez capítulos.
Capítulo 1, «Em que se declara per quantas partes todollos homeens som sem receo, e como per nacença som alguus sem receo.»
No primeiro capítulo, trata Dom Duarte das diferentes naturezas e psicologias dos homens: considera que o homem «ideal», equilibrado, tudo «faz de boa natureza: que tanto e tais coisas deseja quanto e quais bem pode governar»; sentindo-se nesta última frase a beleza da forma, num português curiosamente ainda hoje de fácil leitura. Fala igualmente da vergonha como factor de inibição, defendendo que «por bom entender e geral boa vontade os homens emendam muito, em seus naturais falecimentos e acrescentam suas virtudes». De notar ainda, neste primeiro capítulo, referência à importância da sensciência, o conhecimento de si: «(…) cada um deve trabalhar por se conhecer, e no bem que naturalmente recebeu se manter e acrescentar, e nos falecimentos emendar e corrigir.».
Capítulo 2, «Como alguus com presunçom som sem receo.»
O segundo capítulo é curto e está directamente relacionado com o assunto tratado no sexto. «Certo é que quanto cada um de si conhece (repare-se na insistente fórmula do auto-conhecimento) que melhor sabe fazer alguma coisa, a comete sem receio. E portanto, em cavalgar como em todas as coisas que fazer quisermos, se receio nos embargar de as bem fazer, trabalhemo-nos que as aprendamos. E se as soubermos, teremos nós nelas boa presunção, e logo todo ou a maior parte do receio será fora.»
Capítulo 3, «Como per desejo alguus som sem receo.»
No terceiro capítulo, distingue D. Duarte quatro motivações na vontade: prazer, proveito, honra, fim honesto. Neste último ponto, trata do ser desinteressado, «quando nos praz de fazer alguma coisa por amor de alguma virtude simplesmente, não havendo por principal intenção qualquer proveito, honra ou prazer que daí se possa seguir, mas apenas por saber que é bem o fazemos, sem esperar galardão.»
Capítulo 4, «Como por nom saber alguus som mais sem receo.»
No quarto capítulo, defende que, melhores e mais valiosos que os temerários que se atiram de cabeça por não conhecerem os perigos, são os homens conscientes e virtuosos, capazes de fazer com «que a obra em si fique boa e bem feita, fazendo-a por sua escolha, obrando o melhor para a conhecer, sentindo prazer e deleite fazendo-a.» Esta frase estaria bem para definição de obra de Arte. Por isso o Rei recomenda ainda «conhecer os perigos que geralmente acontecem, para o coração não ter de os aprender à sua custa.»
Capítulo 5, «Como per boas squeenças alguus se fazem sem receo; e de que guisa os moços e outros que / começam a cavalgar devem seer ensynados.»
O quinto capítulo é bastante maior que os anteriores e os seguintes, sendo aquele que mais interesse tem do ponto de vista das recomendações pedagógicas relativamente aos moços que estão a começar a aprender. O autor começa por declarar o que entende por boas «squeenças»: uma sequência de boas experiências, baseando nisso uma pedagogia da experimentação. Defende que não se deve tolher a espontaneidade dos aprendizes e uma pedagogia mais baseada no incentivo que na repreensão.
Para começar, «Não lhe mandem senão que se aperte com a sela e se tenha bem por qualquer guisa que achar mais jeito. E coisa que mal faça, não lho contradigam muito, antes pouco e passo a passo o corrijam. E se fizer bem, largamente o louvem quanto com verdade o puderem fazer (…) guardando sempre de o gabar mais e culpar menos». Depois de confirmados na sela, em «fortaleza e atrevimento», chega então o momento de ser mais exigente e de mudar de atitude pedagógica «e qualquer erro lhe devem contradizer rijamente e tantas vezes até que o emende».
Capítulo 6, «Como per husança os homees som sem receo.»
Em muitos capítulos, como neste, o Rei tem consciência de que a sua tentativa de sistematização se arrisca a ser redundante, pelo que recorre com frequência a fórmulas como as aqui utilizadas: «das outras partes já ditas». Essencialmente defende, como já o tinha feito no segundo capítulo e no anterior, a experiência, o uso continuado, como forma perder o receio e de obter boa presunção e confiança naquilo que se faz. E que «nunca, por estado ou idade, com preguiça perca costume», insistindo para que com a idade não se perca a usança.
Capítulo 7, «Como per razom os homees som sem receo.»
Neste capítulo trata D. Duarte dos conflitos entre razão e vontade. Tal como no capítulo anterior, insiste com os mais velhos: «Assim como os mais dos moços menos temem as quedas do que é bem, assim os homens cada vez mais as receiam do que devem. E assim como a uns mais convém conselho que se receiem e temperem, aos outros, depois que os dias carregam, convém por razão esforço e costume que não se acobardem.»
Capítulo 8, «Como per ave/rem algua avantagem som alguus homees sem receo; e como os homees som sem receo per outro mayor receo.»
Este capítulo parece resultar de um compromisso de espaço, pois trata de dois assuntos diferentes e poderia ter sido subdividido. No primeiro ponto, fala-nos D. Duarte de como o sentimento de estar em vantagem, de ser melhor que a maioria dos outros numa certa «manha», pode dar confiança. Depois, recorrendo a dois pequenos exemplos, de como os homens se tornam sem receio por outro receio maior, «Que uns em navios, temendo a força do mar, se deixam ir naufragar a terra, e outros, por temerem o fogo, se lançam de escadas abaixo», apela novamente aos menos corajosos: «E assim quem recear a míngua que é aos cavaleiros e escudeiros não saberem cavalgar, e cuidarem que, se houverem medo nunca o saberão fazer, convém que esse receio lhes faça perder grande parte do medo de cair, de tal guisa que graças a isso não deixarão de ser bons cavalgadores.»
Capítulo 9, «Como per sanha alguus homees som sem receo.»
Neste capítulo D. Duarte começa por uma questão moral: será a sanha admissível como meio de aprendizagem? Começa por considerar que «Ao bom homem é de todo escusada, porque o seu bom entender e direita vontade, com temperança e fortaleza, lhe bastam para bem direitamente viver e fazer todos seus feitos. E se para tal homem é boa em algumas coisas, sê-lo-á em haver sanha de si se mal fizer, ou dela mesma se a houver contra alguém onde e como não deve. E aos outros, que são em algumas coisas mais fracos e mansos do que a razão manda, é-lhes muito proveitosa se não for tão grande que os turve.» Completando depois com um exemplo, de como uma humilhação inicial pode ser transformada na motivação para uma aprendizagem de sucesso, tomando a sanha por manha, «E vindo a meu propósito: se algum cavaleiro ou escudeiro faz alguma coisa em que faça míngua, por não saber cavalgar, havendo sanha de si, em razão está de se trabalhar de não ficar outra vez em tal perda» e quererá «saber desta manha o que antes não sabia, nem soubera se a sanha não fora.»
Capítulo 10, «Como per graça special alguus som sem receo.»
Este é um capítulo «residual», dedicado às causas inexplicáveis através dos outros capítulos, na obtenção do estatuto de «sem receio». Que dizer «Se algum homem geralmente em seus feitos receia mais do que deve, e acertando-se em algum feito perigoso de se mostrar tão sem receio, que por isso se honra, e escusa grande mal – que diremos que faz isto senão graça especial? E veremos também alguns, sem receio em todos seus feitos, caírem por vezes em grande míngua e desonra.»
No fim deste capítulo, é interessante a forma como D. Duarte prepara a transição para a Terceira Parte: Da segurança, defendendo como o conhecimento e o entendimento «psicológico» da origem do medo, podem ajudar a vencê-lo: «E conhecendo cada um de quantas partes este receio pode vir, e como com algum bom esforço e saber se pode emendar, mais depressa e melhor poderá receber emenda do que fará aquele que não entender nem conhecer o mal donde lhe vem». Volta assim ao conhecimento de si.
Pedagogia e soberania
Agora que nos familiarizámos um pouco com a época e a obra de D. Duarte, vamo-nos então debruçar sobre a nossa questão: qual seria o «propósito e tenção» de que nos fala neste livro o autor? «Ensinança», declara-o no título. Mas porque haveria um soberano de querer ensinar os seus súbditos? Muitos não compreenderam e «disseram que não devia perfilhar tal cuidado quem outros tantos e tão grandes tem» e outras coisas do género, sendo a maior parte do prólogo dedicado a responder a estes detractores. É sem dúvida uma atitude nova.
Perante tipologias da literatura, encontrámos vários posicionamentos, mas todos nos parecem minimizar o real alcance da obra. Consideramos que é um livro injustamente pouco conhecido no âmbito da literatura portuguesa, mas de um extraordinário interesse pedagógico. Se bem que tenha sido minimizado como «prosa de corte» ou destinado apenas à «educação dos reis», ou mesmo apresentado como «prosa moralista» fora de moda, é de uma fina perspicácia.
Sílvio Lima, em 1937, num Ensaio sobre o desporto dizia «O Livro da Ensinança de Dom Duarte é – cronológica e valorativamente – o nosso primeiro tratado, completo, perfeito, científico, de pedagogia desportiva». Esperamos ter conseguido despertar a atenção para a actualidade da leitura desta obra, a qual, se bem que aparentemente se destine apenas à iniciação de mancebos em artes como a da equitação, de facto é bastante mais abrangente, contendo profundos ensinamentos aplicáveis a qualquer arte ou técnica.
Porque haveria o Rei de lhe chamar «Livro»? Hoje, na era do e-book, os livros são para nós banais. No entanto, D. Duarte morre uma década antes de Gutenberg e das primeiras experiências de imprensa: ora, nessa altura, os livros só podiam ser reproduzidos um a um, copiados manualmente, sendo de divulgação limitada; só Reis ou grandes senhores podiam pagar esse luxo. Que leitores podia D. Duarte razoavelmente esperar? No entanto, embora se dirija por vezes especialmente a cavaleiros e escudeiros, na maior parte dos casos dirige-se a «todollos», todos os moços e homens querendo aprender. Pelo que se percebe no seu Prólogo, pretende deixar uma obra para a posteridade (mesmo se a Peste no-lo levou antes que pudesse ter tomado providências para «copiar» o seu livro, que por pouco se perdia).
Quais as motivações de D. Duarte? Que papel assume? O de mestre? No tipo de discurso que utiliza, o Rei revela grande humildade «Isto faço por ensinar os que tanto não souberem, e trazer à lembrança aos que sabem as coisas que lhes bem parecem, e nas falecidas, emendando no que escrevo, a outros poderem avisar.» Usa ainda de outra «manha»: utiliza deliberada e recorrentemente a primeira pessoa do plural, para facilitar o contacto com o leitor: «para sermos ajudados a cavalgar»; «todos os homens somos sem receio»; «podemos errar»; … apenas no primeiro capítulo da II parte, contámos 22 conjugações. O Rei equipara-se ao aprendiz! Diga-se que D. Duarte, como Rei, quis sobretudo criar consensos, envolvendo o povo nas decisões da governança: em cinco anos de reinado reuniu Cortes por cinco vezes.
«E isto não digo por me gabar, mas eu o faço por dar autoridade de minha leitura». Esta é a única referência à sua autoridade, e mesmo assim, invocando apenas uma autoridade intelectual e prática. «Escrevo o que aprendi» diz-nos D. Duarte, para ensino e «avisamento», sempre em tom de bons conselhos, grande respeito e salvaguardando possível opinião contrária. É compreensível que o discurso de D. Duarte possa ter ferido a susceptibilidade de alguns cortesãos mais conservadores. D. Duarte conheceria decerto, por sua mãe, os princípios da Magna Carta inglesa; o seu conceito de soberania parece inspirar-se na visão política de São Tomás de Aquino relativamente à monarquia.
A Magna Carta, de princípios do século XIII, implicava uma cláusula de segurança que previa que um comité de barões pudesse opor-se, pela força se necessário, a uma vontade iníqua do soberano. O poder absoluto dos reis era assim mitigado. Também a igreja procurou limitar a brutalidade e o estilo tirânico muitas vezes assumido pelos Reis na Idade Média. São Tomás de Aquino defendeu na sua Suma Teológica, que o poder do Rei resulta de um contrato: o súbdito deve obedecer, mas por outro lado o Rei está também obrigado a bem governar. Dessa reciprocidade resulta o direito de revolta: «Não se há-de julgar que a multidão age com infidelidade, destituindo o tirano, sem embargo de se lhe ter submetido perpetuamente, porque mereceu não cumpram os súbditos para com ele o pactuado, não se portando ele fielmente, no governo do povo, como exige o dever do rei.» [Escritos políticos de São Tomás de Aquino, Rio de Janeiro, 1995, página 140].
Também em São Tomás encontramos a defesa de um carácter electivo para o soberano, tal como esteve na origem da dinastia de Avis. «É necessário seja promovido a rei, por aqueles a quem tal função compete, um homem de condição tal que não seja provável inclinar-se para a tirania. Por onde Samuel, implorando a providência de Deus para a instituição do rei, diz (1Rs 13,14): “Procurou para si o Senhor um homem conforme ao seu coração e ordenou-lhe o Senhor que fosse chefe de seu povo”.» [Idem, página 138] A verdadeira fonte de legitimidade, como ficara provado pela sua instituição dinástica, era o bem comum, e D. Duarte, tal como, aliás, seu irmão D. Pedro, sentiam-no bem. «Ordenar para o bem comum cabe a toda a multidão ou a alguém a quem cabe governar, fazendo as vezes dessa multidão». [Ibidem, página 9]
Os magotes de que nos fala Fernão Lopes lembram uma democracia, com a participação directa do povo «Passado aquel grande arroído com que as gentes da cidade chegarom ao paaço da Rainha e que o Bispo foi morto, geerou-se antr'eles üa uniom de mortal odio contra quaesquer que sua entençom nom tiinham, em tanto que neuü logar era segura aaqueles que nom seguiam sua opiniom. Cada uü dava folgança a seu oficio, e toda sua ocupaçom era juntar-se em magotes a falar na morte do conde e cousas que aviam acontecido.» Note-se que a multidão também tem limites, mesmo quando consegue impor a sua vontade: em 1383 matou o Bispo de Lisboa cujo único crime era ser castelhano. Também a turba gritara a Pilatos «_Solta Barrabás»… E este do caso lavou as suas mãos.
Embora a Suma Teológica não faça parte dos títulos listados na Biblioteca de Duarte, são referidas várias súmulas de Santos que a poderiam incluir, pelo menos ao nível de excertos ou comentários. Para além disso, logo no início do seu reinado, D. Duarte esteve na biblioteca de Alcobaça, lendo velhos evangelhos e doutrinas. Segundo Saul António Gomes [Cahiers d'études hispaniques médiévales, nº 33, 2010, página 177], está documentado que na primeira metade do século XV «cresceu o número das traduções para português de livros litúrgicos e de devoção, nos scriptoria do Mosteiro de Alcobaça. A biblioteca era procurada por leitores exteriores, leigos e eclesiásticos, que manifestavam interesse no empréstimo ou na cópia» . Decerto D. Duarte contava com um crescente interesse pela cultura e pelos livros: um visionário, para a sua época? Em 1450 o seu filho D. Afonso V abria a Biblioteca do Paço Real ao público bibliófilo.
O mesmo autor, no seu artigo «As políticas culturais de tradução na corte portuguesa no século XV» defende que escrever «é, entre os Príncipes de Avis, tanto um acto de sublime amor pela humaniores litterae, quanto um serviço à res publica, aos portugueses, à pátria viva.» D. Duarte, tal como seu irmão D. Pedro, evidencia particular interesse e atenção dedicados à formação dos seus súbditos, no contexto da afirmação de uma relação de legitimidade já não unívoca, como foi característica da idade média, mas recíproca, tendo por objectivo declarado a formação das mentalidades e a defesa dos princípios políticos da legitimidade do poder elaboradas por São Tomás de Aquino, em torno da reciprocidade do contrato entre aquele que manda / aquele que é mandado.
Os dois infantes herdaram do pai uma saudável «busca de legitimidade», e em ambos se reconhece a preocupação em dar o exemplo, em associar Soberania e Pedagogia, em fazer acompanhar a governança da ensinança, numa atitude quase religiosa, senão mesmo mística e iniciática. Lembre-se que D. Duarte publicou uma Lei a que chamou de Mental (por já andar na mente de seu pai). O termo governança, que usamos no título, ultimamente apresentado por alguns como um neologismo, é comum em D. Duarte, que por exemplo o emprega por várias vezes na parte dedicada ao Poder, no capítulo II, Do poder da fazenda.
A intenção por detrás do «Livro da Ensinança» é quase uma «encantação», uma operação alquímica: pretende melhorar a «qualidade» não apenas «técnica», mas sobretudo humana, dos seus súbditos. Culminando o processo de aprendizagem bem conduzido, um estado especial de graça, reunindo «querer, saber e poder. E se em isto continuarmos, todas as sequências nos virão por sua direita ordenança como nos é melhor.»
Agradecimento: À Anabela Nunes, Psicóloga da adolescência, pela documentação; a João Brites, estudante de Psicologia, pelas estimulantes conversas.
Dedicatória: Aos jovens angolanos do Movimento Revolucionário, a Nito Alves, Emiliano Katumbela e Luaty Beirão, a Rafael Marques, Nuno Dala, Dago e muitos outros, que permitem alimentar a esperança numa transição tranquila e num futuro promissor para Angola.
A história antiga de portugal dedicada a angolanos, acho interessante.
ResponderEliminarComo há 60 anos conheci muitos angolanos que conheciam melhor os reis e os rios de Portugal melhor do que eu aprendi nas minhas berças, li e reli.
E pensei em muitos daqueles angolanos, se alguns serão os pais destes da dedicatória.
Mas não, nada se repete, nem volta a traz.
Cumprimentos