O ignóbil atentado do Charlie-Hebdo fez-me lembrar o obscurantismo terminal da Idade Média retratado por Humberto Eco n'O Nome da Rosa: a químio-terapia social radical recomendada pela escolástica tardia incluía a repressão do riso, vindo a culminar, mais tarde, com as barbaridades praticadas pela Inquisição (o que terá levado a um discreto mea culpa do Papa na sua recente alocução sobre o assunto, que os IBD publicaram). Tempo dos erros do magister dixit, sem lugar para a experimentação ou a ciência, bem patentes, por exemplo, nos erros crassos da geografia de Ptolomeu (mal se saía do Mediterrâneo).
O filme passa-se no ano de 1327, dois anos depois da morte de Dom Dinis, em Santarém. El Rei, casado com a mulher perfeita, uma «cátara», tentou introduzir uma síntese revolucionária com o culto do Espírito Santo, mas a reacção foi forte, apoiando-se nos desencontros filiais que marcaram o fim do seu reinado para lhe prejudicar a herança, a qual, no entanto, como símbolo e mito que era, lhe sobreviveu e se incrustou de forma indelével na identidade cultural nacional, regra geral como contra-poder.
No imaginário feminino, a Rainha Santa encarna a imagem branca, diurna, que a Igreja se esfalfou (apesar dos avisos dos Padres da Igreja) em promover como adorável modelo: a «virgem». No entanto, talvez por oposição, há que figurar o seu esposo na pintura... D. Dinis fez tudo quando quis, segundo se diz. É inconcebível a descontextualização do papel da mulher, associado à privação da sua sexualidade (uma verdadeira excisão social) criando um padrão intangível, que faz de todas as mulheres, por comparação com Maria, verdadeiras prostitutas.
Sem escape para a tentação terrena, a dialéctica católica acabou por empurrar Maria Madalena para o diabólico e muito secundário papel de contra-exemplo (contrariando as evidências do ensinamento do seu Mestre), o que viria a servir de guião a Dan Brown, para dar continuidade ao trabalho de Eco, fazendo cócegas num dos calcanhares de Aquiles do edifício da fé romana. Engraçado é que D. Dinis foi velado na Capela de Maria Madalena (embora esta pertencesse à Igreja de Santa Maria - ambas são, de qualquer forma, Maria...). É que os templários portugueses, que D. Dinis acabara de reconverter em Ordem de Cristo, tinham precisamente por madrinha Maria Madalena.
O bem, o bem, o bem... Esse discurso «teológico» formal da Igreja deu lugar a inúmeras críticas de hipocrisia e a imensas «reformas». Para além dos «amores» com Maria Madalena, muitos foram os episódios apagados (ou muito adulterados) da memória católica, por dogmas mais ou menos oportunos. É que era preciso vulgarizar e colocar os textos sagrados ao alcance do maior número... Embora, como católico, reconheça a importância civilizacional do dogma, para evitar precisamente retrocessos (os católicos andaram dois séculos a discutir o sexo dos anjos; chegando à conclusão de que, a certa altura, é necessário colocar um ponto final nas questões) ou derivas como aquelas que estão a acontecer no mundo muçulmano (o qual não é de forma alguma homogéneo, com várias identidades, sendo as mais visíveis a sunita e a chiita, mas que, por não ter o equivalente de um Papa, não é capaz de fixar um corpo dogmático estável, sendo por isso muito vulnerável às prédicas alucinadas, fundamentalistas e anti-sociais), não me impeço de pensar, de questionar, ou mesmo de elaborar opiniões.
E estou-me a lembrar de um desses episódios, que evidencia pormenores muito desencontrados dos apóstolos... o que teria levado a uma supressão selectiva. Referir-me-ei portanto apenas à versão canónica de Marcos, que nos conta a chegada de Cristo a Jerusalém (onde acaba por dar umas valentes biqueiradas nas bancas dos vendilhões que usurpavam a Casa do Senhor): ao ver uma figueira, o Mestre faz um desvio para passar por ela, dizendo que tinha fome, o que intriga bastante os Seus seguidores, pois não estavam em tempo de figos. Depois de todos terem chegado, o Mestre estendeu a mão... e, como era de esperar, não colheu figo nenhum, pois os não havia. Então, Jesus virou-se para a árvore e disse: «Nunca mais homem coma fruto teu». Mais tarde, à saída de Jerusalém, Pedro vira-se para o Mestre e aponta «Reparai, Mestre, a figueira que amaldiçoasteis secou!» Se a figueira fosse estéril, ainda se compreendia... Ora era normal que não desse frutos fora de tempo. Jesus Cristo era de uma maldade gratuita? Ou estaria o Mestre apenas a insinuar (seria só para os mais espertos?) que o «mal» também é um princípio «criativo» a considerar? Há, no mínimo, que relativizar. «E o Senhor louvou ao criado desonesto, pois os filhos da luz devem ser tão [ou mais] avisados quanto os filhos das trevas»...
O filme de Eco retrata precisamente a repressão de uma heresia, a qual, embora associada a ideias decerto generosas, se arriscava a colocar em risco a sociedade da época, concebida como comunidade dos crentes (vivos e mortos). Em Santarém, o Santíssimo Milagre foi uma magnífica obra dos franciscanos para ajudar os habitantes de Santarém a consolidar a sua fé na Eucaristia (precisamente o pomo da discórdia, ou seja, aquilo que os «hereges» negavam, estar Cristo naquele «bocadinho de pão» a que chamam hóstia)...
Engraçado é a constatação de que as derivas fundamentalistas, tanto cristãs como muçulmanas, tenham tomado por alvo as mulheres e o riso. Um bom treino para a liberdade mental é a capacidade de nos rirmos de nós próprios, de aceitarmos o ridículo (a Igreja tolerou sempre o Carnaval, muito a contra-gosto, como válvula de escape). Um dos elementos do culto legado por D. Dinis, de que ainda sobram algumas sombras na Festa dos Tabuleiros em Tomar, ou nos Açores, é igualmente a capacidade de subversão. Durante um dia, reinava o idiota da aldeia, ou uma criança, que era coroado por um dia, com pompa e circunstância, como imperador do Espírito Santo, e todos, sem excepção, lhe tinham de obedecer, por mais inconcebível ou ridícula que fosse a ordem. Há alguns (infelizmente relativamente vagos) relatos de tal culto se praticar nas carreiras dos Descobrimentos.
Estou a imaginar a Raínha Santa Isabel (tal como sua parente húngara, conhecida pelo Milagre das Rosas, um conhecido símbolo alquímico), tentando ocultar do seu marido, entre os folhos da saia, o Charlie-Hebdo: «São (só) risos, Senhor!»
PS A Igreja não se livra do fantasma da repressão albigense... Coincidência (ou não), foi no dia de Madalena que se deu o episódio de Béziers, durante o qual um dos guerreiros teria perguntado ao legado papal, antes do assalto (que seria fulminante), como fazer para distinguir quem era ou não herege, ao que este teria respondido: «Matem-nos a todos, Deus escolherá os seus», o que foi «religiosamente» cumprido, não escapando sequer as mulheres e crianças que se haviam refugiado na Catedral. Uma nota ainda, para os mais atentos, a quem não escapará a «fuga» à linha editorial deste blog, que se ocupa essencialmente de assuntos da Guiné-Bissau: foi uma certa irritação, contra a atitude do Presidente do Senegal em proibir a circulação do Charlie-Hebdo (bem como de certas pessoas que parecem querer branquear o atentado), a que não será decerto alheia a circunstância de ter bebido uns valentes copos de tinto (pois, como mostrou a Raínha, nem só de pão vive o homem [e a mulher]: também precisam de rosas, de risos e de gozo): talvez por isso o texto esteja denso, aparentemente confuso e com pouco nexo, mas o assunto é complexo (e não estou a falar de sexo, contrariamente ao que algumas mentes menos corteses possam pensar). Queiram perdoar, mas enfim: jorrou!
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