Às autoridades angolanas, ao seu responsável máximo, o Presidente: qualquer coisa que possa acontecer ao Luaty só vai reforçá-lo. Se o matarem e fizerem desaparecer, vão nascer dez como ele; se o magoarem, ele fica mais forte; o melhor mesmo para os responsáveis, na própria perspectiva da repressão, é soltá-lo já.
Para quem não conhece, o Luaty Beirão é um corajoso rapper angolano que encarna um espírito de inconformismo e revolta contra o regime de José Eduardo dos Santos. Já o ano passado fora vítima de uma cabala, da qual aqui demos conta neste blog. Passado quase um ano sobre o desaparecimento de dois activistas, que também aqui denunciámos, esperemos que não façam agora, mais uma vez, «desaparecer» a pessoa mais incómoda para o regime. É que hoje de manhã, na sequência da dispersão pela polícia de uma manifestação pacífica convocada para Luanda para pedir esclarecimentos sobre o seu paradeiro, o Luaty Beirão e o Nito Alves, entre outros, foram presos e levados para parte incerta...
Fica mal à «nomenclatura» ter medo de um simples músico!
Libertem as mentes dos angolanos! Libertem Luaty!
sábado, 30 de março de 2013
segunda-feira, 11 de março de 2013
Aero Bio Grafo III - Nelson Mandela
No dia 28 de Fevereiro apresentámos outro grande líder africano, nascido antes de Cabral, mas ainda vivo. Oportunamente colocarei aqui a respectiva crónica.
Bio Aero Grafo II - Amílcar Cabral
A sessão do Aero Bio Grafo prevista para 14 de Fevereiro, de homenagem a Agostinho da Silva (um dia depois da data do seu aniversário de nascimento) não se realizou, devido à presença obrigatória numa Assembleia Geral de convocação intempestiva. No entanto, passou-se uma coisa curiosa: depois da Assembleia, lembrei-me de ir beber um copo até ao Xantarim... onde encontrei o Fernando Romão, com um livro na mão; quando fui ver o que era, era uma recolha sobre Agostinho da Silva, cuja foto de capa foi precisamente a mesma que dera origem ao graffiti! O «pulgão» tinha ouvido na rádio a notícia do aniversário e lembrara-se de ler um pouco... Combinámos logo que faríamos uma apresentação em conjunto, na primeira semana de Junho, para dar continuidade a esta presença, às quintas, no Xantarim.
Ou seja, o segundo evento desta série acabou por ser uma semana depois, no dia 21 de Fevereiro, dedicado a Amílcar Cabral, o grande líder guineense. Nasceu a 12 de Setembro de 1924, filho de um cabo-verdeano, Juvenal Lopes Cabral, e de uma guineense, Iva Pinhel Évora, que este conhecera no continente, por lá exercendo como professor primário (mesmo sem habilitações). Era um homem motivado para a política, que se mobilizara no ensejo de melhorar as difíceis condições de vida do seu povo, procurando uma solução para as grandes fomes endémicas que assolavam o seu arquipélago, chegando a propor, aquando da visita de um Ministro, a construção de sistemas de irrigação e de armazéns que conservassem os alimentos produzidos em anos bons e permitissem atenuar as carências em anos de seca. O Ministro deve ter deitado o papel para o lixo...
Portugal perdeu, em pleno século XX, a oportunidade de se distanciar e distinguir do modelo colonial europeu que nunca fora o seu. Há colonialismos e colonialismos...Os coitados dos alemães (ou sortudos, talvez por não terem tido propriamente mercados coloniais protegidos, estão onde estão...), que chegaram atrasados, depois da sua unificação, só começaram a sua experiência no fim do século XIX, depois das conclusões do Congresso de Viena, na qual o Direito Internacional deixou de reconhecer como legitimidade para a soberania o simples facto de ter sido o primeiro a chegar para passar a basear-se na ocupação de facto; uma boa comparação é a coluna que desembarcou na Namíbia e foi exterminada a poucos quilómetros da costa; já, pela mesma altura, Capelo e Ivens fizeram a travessia integral, de costa a costa, do continente. Quem tem boca (e respeito) vai a Roma.
Para tentar ilustrar essa diferença, apontei o exemplo de Honório Barreto, também ele nascido de mãe guineense e pai caboverdeano, mas um século antes: em colónias de franceses ou ingleses, seria impensável uma carreira como a sua; pura e simplesmente impossível um preto (pedi desculpa à assistência, incluindo um distinto convidado guineense, por usar termos que poderiam ser confundidos com racismo, mas é esse mesmo o assunto!) aceder ao cargo máximo da administração colonial, o de Governador da província. Envolveu-se em polémicas com políticos da Metrópole, a quem chegou a dar lições de patriotismo; até à independência, funcionou como exemplo e expoente de uma certa «igualdade» de oportunidades e de respeito pelo mérito, devido independentemente da raça. Foi mesmo nomeado comendador da Ordem de Cristo, alta distinção honorífica.
Lembrei depois que quando visitei a Guiné, em 2009, na minha incursão até Jemberém, no Sul, passei por Bafatá, para visitar a casa na qual viveu Amílcar Cabral, até aos oito anos, a qual encontrei num estado de lastimável ruína, invadida pelas ervas; também a antiga cidade parecia quase deserta e abandonada (ao contrário de Gabu que prosperou bastante). Esse casarão pertenceu a uma família de Santarém, os Pita Soares. Quando Amílcar Cabral fez oito anos, surgiu uma oportunidade para a família em Santiago, Cabo Verde, para onde se mudaram. Já depois, o Liceu, viria a acabá-lo em São Vicente, com uma média altíssima, após o que arranjou trabalho na Imprensa Nacional.
No entanto, esse emprego não duraria muito, pois em 1945, no fim da Guerra, surgiu a oportunidade de uma bolsa de estudo, que aproveitou para se mudar para Lisboa, inscrevendo-se no curso de Agronomia, no qual era o único aluno «preto». A sua paixão e jeito para o futebol levam-no a inscrever-se na equipa de Agronomia, na qual não passa despercebido: chega a ser convidado para jogar no Benfica, convite que recusa, mantendo a camisola académica. Os seus colegas de curso lembram-no como muito activo, de uma alegria e simpatia contagiantes. Em 1950, acabado o curso com distinção e nota a um ponto do máximo, vem trabalhar para Santarém, para a então Escola de Regentes Agrícolas, por aqui se mantendo por dois anos.
Sempre em contacto com Lisboa, onde frequentava a Casa dos Estudantes do Império: aquele que estava desenhado para ser um clube da elite colonial indígena (esse era o plano ultramarino de Adriano Moreira como Ministro, durante algum tempo apoiado por Salazar: formar uma elite de quadros que pudesse vir a assumir os destinos das suas nações, mantendo os vínculos históricos que as uniam a Portugal), acabou por se tornar numa incubadora de líderes revolucionários. Uma fugaz aproximação ao Partido Comunista Português, por parte de Cabral, não teve continuidade, por o Partido ter mantido a sua política nacionalista e se recusar a encarar seriamente a luta anti-colonial nas províncias ultramarinas, reduzindo o problema ao «todo» da metrópole, a resolver pela «democratização» do regime.
Foi aqui, em Santarém, que sentiu a saudade e o irreprimível desejo de voltar à sua terra natal, plenamente imbuído já da missão política que sentia ter sido chamado a desempenhar. Como viria mais tarde a referir numa conferência dada no mato, poderia ter adoptado por projecto de vida aburguesar-se no âmbito de uma carreira profissional na sua área, com um bom ordenado... mas não, optou por se apresentar ao lado do seu povo, na luta contra a injustiça de que era alvo. Iria voltar para a Guiné! Rapidamente arranja emprego e em 1953 percorre o país, por conta do Instituto Nacional de Estatística, realizando o Recenseamento Agrícola desse ano, ainda hoje uma fonte documental de grande interesse histórico para o conhecimento do regime de agricultura tradicional, na Guiné.
No entanto, o seu empenho, a evidência do seu carisma e simpatia, o seu envolvimento activo com os problemas das pessoas, rapidamente lhe atraíram o ódio do Governador da Província, Melo e Alvim, que não vê com bons olhos a ascendência que o jovem estava a ganhar no seio do seu povo: em 1955 obriga Cabral a abandonar a Guiné, apontando o seu carácter subversivo; Cabral troca assim a Guiné por Angola, onde se relaciona com aqueles que viriam a ser os futuros líderes do MPLA, começando por defender, tal como o ANC de Mandela, uma luta política pacífica, possibilidade que foi definitivamente a enterrar com o massacre de Pidjiguiti, em 1959. Quantas oportunidades perdidas...
Em 1960, ainda antes do estalar da crise da Índia e dos massacres em Angola, desloca-se à Conferência Internacional de Londres, na qual denuncia o colonialismo português, mas também afirma que essa luta não é contra um povo, mas sim contra um regime, o colonial. Em Janeiro de 1963 dá início à luta armada, com a abertura da frente sul, num ataque ao quartel de Tite a partir da fronteira com a Guiné Conacri, graças ao apoio do Presidente pan-africano Sékou Touré. É aí, no mato, que em 1965 é visitado por Che Guevara, curioso com aquele líder africano; um ano mais tarde é Cabral que retribui a visita, deslocando-se a Cuba, onde se faz fotografar ao lado de Fidel Castro. Aceita a ajuda técnica cubana, mas mantém o seu espírito crítico, não sem humor: uma vez confessou o seu «erro político», ao aceitar, num «pacote» de formação em guerrilha, um módulo de sabotagem de comboios; só depois se teria lembrado que na Guiné não haviam (nem existem) caminhos de ferro.
Também em relação ao marxismo e à sua aplicabilidade em África, mantinha as suas reservas: afirmava peremptoriamente que «Marx não vivia numa sociedade tribal». Cabral sentia-se mais um pedagogo do que propriamente um engenheiro social compulsivo, como Estaline: a revolução seria um facto eminentemente orgânico, deveria vir de baixo para cima, e não ser imposto de cima para baixo. Isso mesmo reconhecia Paulo Freire, grande filósofo e pedagogo brasileiro, que fazia questão de partilhar a sua grande admiração por Cabral, lamentando com desgosto nunca ter chegado a conhecê-lo pessoalmente. Admirava essencialmente a qualidade de liderança que evidenciava Amílcar Cabral, sempre a falar com todos os do seu povo.
Paulo Freire viria depois a trabalhar na Guiné, num revolucionário projecto de alfabetização de adultos, que o deixou bastante desiludido: vai uma grande distância da teoria à prática... por isso, recomendo a quem não conheça esta experiência, mais o livro que Paulo Freire escreveu em parceria com Sérgio Guimarães, «África ensinando a gente», no qual avalia o seu falhanço, do que propriamente as «Cartas à Guiné-Bissau», da sua correspondência com o então Ministro da Educação, Mário Cabral. A experiência guineense marcou profundamente Paulo Freire, que defendia que era absolutamente fundamental, como Cabral mostrara, diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, apontando para um ideal no qual fala e prática se confundem eficientemente. Este era um «cavalo de batalha» que Freire tinha em comum com o seu amigo Agostinho da Silva.
Em Julho de 1970, numa grande vitória diplomática, Amílcar Cabral é recebido pelo Papa em audiência privada. Já uma carta apostólica de 1967, Africae Terrarum, tinha irritado profundamente Salazar. Agora dava-se o caso «Insólito e lamentável» de que o DN fez manchete, de o Papa «receber terroristas». Retaliação do regime ou não, em Novembro desse mesmo ano, dá-se a Operação Mar Verde, uma operação de comandos anfíbia que desembarca em Conacri, com vários objectivos: privar o PAIGC do apoio de Sekou Touré (essencialmente eliminando a Força Aérea, destruindo no chão os MIG soviéticos); eliminar fisicamente a direcção do PAIGC; resgatar os prisioneiros portugueses. Devido a fortes falhas na informação disponível (PIDE), só o terceiro objectivo viria a ser alcançado.
Em 1972, em Conacri, numa Conferência de homenagem a outro grande líder africano, Nkrumah, critica o neo-colonialismo que parecia em vias de reconquistar o continente. Uma parte das críticas eram endereçadas aos antigos países colonizadores que agora vestiam outra pele mas continuavam por outros meios as antigas práticas predatórias; mas criticava também os próprios africanos, referindo um provérbio guineense: «O arroz só coze dentro da panela». Como grande pedagogo social, defende que a libertação só poderia ser cultural... entrando para a prática «mental» do dia-a-dia; deixando assim antever, nas entrelinhas do seu discurso, o seu «amor» por Portugal, ao afirmar, neste contexto, que era necessário não subestimar os contributos da cultura opressora (e outras, claro).
No princípio do ano de 1973 a guerra estava perdida para Portugal. Ao contrário de Angola, quase inteiramente pacificada, ou mesmo de Moçambique, onde os cenários da guerra estavam circunscritos e bem delimitados, na Guiné-Bissau o PAIGC ocupava vastas áreas de território. Mas Cabral estava prestes a desferir o golpe de misericórdia na já de si precária situação do exército colonial no terreno: graças à sua simpatia e diplomacia conseguira obter alguns mísseis Terra-Ar portáteis, conhecidos pela NATO como SAM 7 «Grail», ou Strela. O apoio aéreo ao combate ao solo era a mais importante vantagem de que dispunham os soldados portugueses. Mal chegam as baterias são imediatamente utilizadas com sucesso: o piloto contou depois a sua surpresa, dizendo que só tinha visto uma «coisa» a vir contra ele e mal tivera tempo para se ejectar; surpresa também do seu asa ao constatar o «misterioso» desaparecimento do seu parceiro.
Com dois caças FIAT perdidos em menos de 10 dias, a Força Aérea sofre fortes restrições à sua actuação, sobretudo em termos de tecto, ou seja passa a actuar a altitudes muito maiores, perdendo grande parte da sua eficácia operacional (antes chegavam a fazer voos rasantes para reconhecimento de contacto). Na frente Norte, os helicópteros deixam de evacuar os feridos (e os mortos) e o abastecimento passa a ter de se efectuar por meios exclusivamente terrestres, com maior exposição ao inimigo; por essa altura o exército português controla apenas alguns quartéis, onde se entrincheiram, evitando as saídas e abandonando o resto do território aos guerrilheiros, os seus soldados com uma moral já bastante afectada, sujeitando-se a uma terrível flagelação noturna (sobretudo pelos efeitos psicológicos da falta de sono e constante estado de sobressalto) pelos conhecidos «orgãos» de Estaline.
Quartéis como o de Guidage, na fronteira com o Senegal, para serem reabastecidos, necessitavam de organizar colunas, que se tornavam alvos fáceis, na sua lenta deslocação pelas estradas minadas que tinham de ser picadas. A estratégia de Cabral, decerto inspirada na guerrilha vietnamita, era a de fustigar essas colunas em várias vagas sucessivas, até que os soldados ficassem sem munições, lançando depois o ataque final. Salgueiro Maia, na sua «Crónica dos feitos por Guidage», conta bem as dificuldades por que passou o soldado português, que muitas vezes combatia em condições adversas: sem querer antecipar-me, pois também vai ter direito a uma sessão do Aero Bio Grafo, a 25 de Abril, lembro que Maia «encostara» a G3 e combatia com uma AK apreendida ao inimigo, muito mais leve e manuseável; que inveja que tinham também do cantil em alumínio que usavam os guerrilheiros do PAIGC, com muito maior capacidade mas bastante mais leve de transportar... Maia conta como era difícil comandar uma equipa quando metade dos seus homens estavam desmaiados de cansaço e desidratação, ou à beira disso...
Quando o General Spínola se afasta, voltando para a Metrópole para redigir o seu livro Portugal e o Futuro, que alguns associaram erradamente ao 25 de Abril, em entrevista com Marcelo Caetano, tê-lo-á avisado de que Portugal estaria à beira de um «colapso» militar na Guiné-Bissau. É essencialmente esse o motor do 25 de Abril: alguns jovens oficiais, saídos da Academia Militar, que se haviam batido com brio na Guiné, aperceberam-se da vergonha que representaria para o exército português a inevitável derrota, num prazo mais ou menos curto. Essa atitude patriótica parece-me ter sido a sua principal motivação, sem querer escamotear que foram também apontados pretextos de classe e de defesa dos seus interesses «corporativos», colocados em causa por Decreto-Lei que pretendia empurrar os milicianos para o oficialato e a continuação do esforço de Guerra.
A conclusão inevitável é a de que o próprio povo português deve a sua libertação a Amílcar Cabral e à guerra de guerrilha que travou com sucesso na Guiné-Bissau contra o tardio e anacrónico regime colonial português. Mas Cabral não viveria o suficiente para ver a independência do seu país. A 20 de Janeiro de 1973 seria assassinado em Conacri, quando voltava para casa. Embora a PIDE tenha sido acusada pelos guineenses, esta, se é que tenha tido realmente algum vago conhecimento do assunto, como defendem alguns, não foi, de forma alguma, a mandatária. Uma série de programas sobre o assassinato de Cabral, passou há bem pouco tempo na Televisão portuguesa, com entrevistas a muitos dos actores realizadas ao longo do tempo (alguns, como Nino ou Tagma, morreram entretanto): fica-se com a clara impressão de que Sekou Touré é a peça chave nesse puzzle; em franca perda de prestígio, a sua estrela parecia abafada pelo sucesso de Amílcar, que se preparava para «tomar posse»...
A transcrição da apresentação das biografias aqui no blogue está um pouco atrasada, porque tenho tido imenso trabalho; o «boss», no Xantarim, diz que não faz mal, que o evento é lá, e que, portanto, quem «está, está; quem não está, estivesse...». Continuarei a colocá-las, mas a um ritmo lento, até porque tenho de preparar, para cada quinta-feira, o homenageado da semana. Esta semana foi o José Estaline, e já na próxima Quinta, dia 14 de Março, será a vez de António de Oliveira Salazar. O cartaz completo do mês de Março é:
7 de Março - José Estaline
14 de Março - António Oliveira Salazar
21 de Março - Emiliano Zapata
28 de Março - Corto Maltese
Ou seja, o segundo evento desta série acabou por ser uma semana depois, no dia 21 de Fevereiro, dedicado a Amílcar Cabral, o grande líder guineense. Nasceu a 12 de Setembro de 1924, filho de um cabo-verdeano, Juvenal Lopes Cabral, e de uma guineense, Iva Pinhel Évora, que este conhecera no continente, por lá exercendo como professor primário (mesmo sem habilitações). Era um homem motivado para a política, que se mobilizara no ensejo de melhorar as difíceis condições de vida do seu povo, procurando uma solução para as grandes fomes endémicas que assolavam o seu arquipélago, chegando a propor, aquando da visita de um Ministro, a construção de sistemas de irrigação e de armazéns que conservassem os alimentos produzidos em anos bons e permitissem atenuar as carências em anos de seca. O Ministro deve ter deitado o papel para o lixo...
Portugal perdeu, em pleno século XX, a oportunidade de se distanciar e distinguir do modelo colonial europeu que nunca fora o seu. Há colonialismos e colonialismos...Os coitados dos alemães (ou sortudos, talvez por não terem tido propriamente mercados coloniais protegidos, estão onde estão...), que chegaram atrasados, depois da sua unificação, só começaram a sua experiência no fim do século XIX, depois das conclusões do Congresso de Viena, na qual o Direito Internacional deixou de reconhecer como legitimidade para a soberania o simples facto de ter sido o primeiro a chegar para passar a basear-se na ocupação de facto; uma boa comparação é a coluna que desembarcou na Namíbia e foi exterminada a poucos quilómetros da costa; já, pela mesma altura, Capelo e Ivens fizeram a travessia integral, de costa a costa, do continente. Quem tem boca (e respeito) vai a Roma.
Para tentar ilustrar essa diferença, apontei o exemplo de Honório Barreto, também ele nascido de mãe guineense e pai caboverdeano, mas um século antes: em colónias de franceses ou ingleses, seria impensável uma carreira como a sua; pura e simplesmente impossível um preto (pedi desculpa à assistência, incluindo um distinto convidado guineense, por usar termos que poderiam ser confundidos com racismo, mas é esse mesmo o assunto!) aceder ao cargo máximo da administração colonial, o de Governador da província. Envolveu-se em polémicas com políticos da Metrópole, a quem chegou a dar lições de patriotismo; até à independência, funcionou como exemplo e expoente de uma certa «igualdade» de oportunidades e de respeito pelo mérito, devido independentemente da raça. Foi mesmo nomeado comendador da Ordem de Cristo, alta distinção honorífica.
Lembrei depois que quando visitei a Guiné, em 2009, na minha incursão até Jemberém, no Sul, passei por Bafatá, para visitar a casa na qual viveu Amílcar Cabral, até aos oito anos, a qual encontrei num estado de lastimável ruína, invadida pelas ervas; também a antiga cidade parecia quase deserta e abandonada (ao contrário de Gabu que prosperou bastante). Esse casarão pertenceu a uma família de Santarém, os Pita Soares. Quando Amílcar Cabral fez oito anos, surgiu uma oportunidade para a família em Santiago, Cabo Verde, para onde se mudaram. Já depois, o Liceu, viria a acabá-lo em São Vicente, com uma média altíssima, após o que arranjou trabalho na Imprensa Nacional.
No entanto, esse emprego não duraria muito, pois em 1945, no fim da Guerra, surgiu a oportunidade de uma bolsa de estudo, que aproveitou para se mudar para Lisboa, inscrevendo-se no curso de Agronomia, no qual era o único aluno «preto». A sua paixão e jeito para o futebol levam-no a inscrever-se na equipa de Agronomia, na qual não passa despercebido: chega a ser convidado para jogar no Benfica, convite que recusa, mantendo a camisola académica. Os seus colegas de curso lembram-no como muito activo, de uma alegria e simpatia contagiantes. Em 1950, acabado o curso com distinção e nota a um ponto do máximo, vem trabalhar para Santarém, para a então Escola de Regentes Agrícolas, por aqui se mantendo por dois anos.
Sempre em contacto com Lisboa, onde frequentava a Casa dos Estudantes do Império: aquele que estava desenhado para ser um clube da elite colonial indígena (esse era o plano ultramarino de Adriano Moreira como Ministro, durante algum tempo apoiado por Salazar: formar uma elite de quadros que pudesse vir a assumir os destinos das suas nações, mantendo os vínculos históricos que as uniam a Portugal), acabou por se tornar numa incubadora de líderes revolucionários. Uma fugaz aproximação ao Partido Comunista Português, por parte de Cabral, não teve continuidade, por o Partido ter mantido a sua política nacionalista e se recusar a encarar seriamente a luta anti-colonial nas províncias ultramarinas, reduzindo o problema ao «todo» da metrópole, a resolver pela «democratização» do regime.
Foi aqui, em Santarém, que sentiu a saudade e o irreprimível desejo de voltar à sua terra natal, plenamente imbuído já da missão política que sentia ter sido chamado a desempenhar. Como viria mais tarde a referir numa conferência dada no mato, poderia ter adoptado por projecto de vida aburguesar-se no âmbito de uma carreira profissional na sua área, com um bom ordenado... mas não, optou por se apresentar ao lado do seu povo, na luta contra a injustiça de que era alvo. Iria voltar para a Guiné! Rapidamente arranja emprego e em 1953 percorre o país, por conta do Instituto Nacional de Estatística, realizando o Recenseamento Agrícola desse ano, ainda hoje uma fonte documental de grande interesse histórico para o conhecimento do regime de agricultura tradicional, na Guiné.
No entanto, o seu empenho, a evidência do seu carisma e simpatia, o seu envolvimento activo com os problemas das pessoas, rapidamente lhe atraíram o ódio do Governador da Província, Melo e Alvim, que não vê com bons olhos a ascendência que o jovem estava a ganhar no seio do seu povo: em 1955 obriga Cabral a abandonar a Guiné, apontando o seu carácter subversivo; Cabral troca assim a Guiné por Angola, onde se relaciona com aqueles que viriam a ser os futuros líderes do MPLA, começando por defender, tal como o ANC de Mandela, uma luta política pacífica, possibilidade que foi definitivamente a enterrar com o massacre de Pidjiguiti, em 1959. Quantas oportunidades perdidas...
Em 1960, ainda antes do estalar da crise da Índia e dos massacres em Angola, desloca-se à Conferência Internacional de Londres, na qual denuncia o colonialismo português, mas também afirma que essa luta não é contra um povo, mas sim contra um regime, o colonial. Em Janeiro de 1963 dá início à luta armada, com a abertura da frente sul, num ataque ao quartel de Tite a partir da fronteira com a Guiné Conacri, graças ao apoio do Presidente pan-africano Sékou Touré. É aí, no mato, que em 1965 é visitado por Che Guevara, curioso com aquele líder africano; um ano mais tarde é Cabral que retribui a visita, deslocando-se a Cuba, onde se faz fotografar ao lado de Fidel Castro. Aceita a ajuda técnica cubana, mas mantém o seu espírito crítico, não sem humor: uma vez confessou o seu «erro político», ao aceitar, num «pacote» de formação em guerrilha, um módulo de sabotagem de comboios; só depois se teria lembrado que na Guiné não haviam (nem existem) caminhos de ferro.
Também em relação ao marxismo e à sua aplicabilidade em África, mantinha as suas reservas: afirmava peremptoriamente que «Marx não vivia numa sociedade tribal». Cabral sentia-se mais um pedagogo do que propriamente um engenheiro social compulsivo, como Estaline: a revolução seria um facto eminentemente orgânico, deveria vir de baixo para cima, e não ser imposto de cima para baixo. Isso mesmo reconhecia Paulo Freire, grande filósofo e pedagogo brasileiro, que fazia questão de partilhar a sua grande admiração por Cabral, lamentando com desgosto nunca ter chegado a conhecê-lo pessoalmente. Admirava essencialmente a qualidade de liderança que evidenciava Amílcar Cabral, sempre a falar com todos os do seu povo.
Paulo Freire viria depois a trabalhar na Guiné, num revolucionário projecto de alfabetização de adultos, que o deixou bastante desiludido: vai uma grande distância da teoria à prática... por isso, recomendo a quem não conheça esta experiência, mais o livro que Paulo Freire escreveu em parceria com Sérgio Guimarães, «África ensinando a gente», no qual avalia o seu falhanço, do que propriamente as «Cartas à Guiné-Bissau», da sua correspondência com o então Ministro da Educação, Mário Cabral. A experiência guineense marcou profundamente Paulo Freire, que defendia que era absolutamente fundamental, como Cabral mostrara, diminuir a distância entre o que se diz e o que se faz, apontando para um ideal no qual fala e prática se confundem eficientemente. Este era um «cavalo de batalha» que Freire tinha em comum com o seu amigo Agostinho da Silva.
Em Julho de 1970, numa grande vitória diplomática, Amílcar Cabral é recebido pelo Papa em audiência privada. Já uma carta apostólica de 1967, Africae Terrarum, tinha irritado profundamente Salazar. Agora dava-se o caso «Insólito e lamentável» de que o DN fez manchete, de o Papa «receber terroristas». Retaliação do regime ou não, em Novembro desse mesmo ano, dá-se a Operação Mar Verde, uma operação de comandos anfíbia que desembarca em Conacri, com vários objectivos: privar o PAIGC do apoio de Sekou Touré (essencialmente eliminando a Força Aérea, destruindo no chão os MIG soviéticos); eliminar fisicamente a direcção do PAIGC; resgatar os prisioneiros portugueses. Devido a fortes falhas na informação disponível (PIDE), só o terceiro objectivo viria a ser alcançado.
Em 1972, em Conacri, numa Conferência de homenagem a outro grande líder africano, Nkrumah, critica o neo-colonialismo que parecia em vias de reconquistar o continente. Uma parte das críticas eram endereçadas aos antigos países colonizadores que agora vestiam outra pele mas continuavam por outros meios as antigas práticas predatórias; mas criticava também os próprios africanos, referindo um provérbio guineense: «O arroz só coze dentro da panela». Como grande pedagogo social, defende que a libertação só poderia ser cultural... entrando para a prática «mental» do dia-a-dia; deixando assim antever, nas entrelinhas do seu discurso, o seu «amor» por Portugal, ao afirmar, neste contexto, que era necessário não subestimar os contributos da cultura opressora (e outras, claro).
No princípio do ano de 1973 a guerra estava perdida para Portugal. Ao contrário de Angola, quase inteiramente pacificada, ou mesmo de Moçambique, onde os cenários da guerra estavam circunscritos e bem delimitados, na Guiné-Bissau o PAIGC ocupava vastas áreas de território. Mas Cabral estava prestes a desferir o golpe de misericórdia na já de si precária situação do exército colonial no terreno: graças à sua simpatia e diplomacia conseguira obter alguns mísseis Terra-Ar portáteis, conhecidos pela NATO como SAM 7 «Grail», ou Strela. O apoio aéreo ao combate ao solo era a mais importante vantagem de que dispunham os soldados portugueses. Mal chegam as baterias são imediatamente utilizadas com sucesso: o piloto contou depois a sua surpresa, dizendo que só tinha visto uma «coisa» a vir contra ele e mal tivera tempo para se ejectar; surpresa também do seu asa ao constatar o «misterioso» desaparecimento do seu parceiro.
Com dois caças FIAT perdidos em menos de 10 dias, a Força Aérea sofre fortes restrições à sua actuação, sobretudo em termos de tecto, ou seja passa a actuar a altitudes muito maiores, perdendo grande parte da sua eficácia operacional (antes chegavam a fazer voos rasantes para reconhecimento de contacto). Na frente Norte, os helicópteros deixam de evacuar os feridos (e os mortos) e o abastecimento passa a ter de se efectuar por meios exclusivamente terrestres, com maior exposição ao inimigo; por essa altura o exército português controla apenas alguns quartéis, onde se entrincheiram, evitando as saídas e abandonando o resto do território aos guerrilheiros, os seus soldados com uma moral já bastante afectada, sujeitando-se a uma terrível flagelação noturna (sobretudo pelos efeitos psicológicos da falta de sono e constante estado de sobressalto) pelos conhecidos «orgãos» de Estaline.
Quartéis como o de Guidage, na fronteira com o Senegal, para serem reabastecidos, necessitavam de organizar colunas, que se tornavam alvos fáceis, na sua lenta deslocação pelas estradas minadas que tinham de ser picadas. A estratégia de Cabral, decerto inspirada na guerrilha vietnamita, era a de fustigar essas colunas em várias vagas sucessivas, até que os soldados ficassem sem munições, lançando depois o ataque final. Salgueiro Maia, na sua «Crónica dos feitos por Guidage», conta bem as dificuldades por que passou o soldado português, que muitas vezes combatia em condições adversas: sem querer antecipar-me, pois também vai ter direito a uma sessão do Aero Bio Grafo, a 25 de Abril, lembro que Maia «encostara» a G3 e combatia com uma AK apreendida ao inimigo, muito mais leve e manuseável; que inveja que tinham também do cantil em alumínio que usavam os guerrilheiros do PAIGC, com muito maior capacidade mas bastante mais leve de transportar... Maia conta como era difícil comandar uma equipa quando metade dos seus homens estavam desmaiados de cansaço e desidratação, ou à beira disso...
Quando o General Spínola se afasta, voltando para a Metrópole para redigir o seu livro Portugal e o Futuro, que alguns associaram erradamente ao 25 de Abril, em entrevista com Marcelo Caetano, tê-lo-á avisado de que Portugal estaria à beira de um «colapso» militar na Guiné-Bissau. É essencialmente esse o motor do 25 de Abril: alguns jovens oficiais, saídos da Academia Militar, que se haviam batido com brio na Guiné, aperceberam-se da vergonha que representaria para o exército português a inevitável derrota, num prazo mais ou menos curto. Essa atitude patriótica parece-me ter sido a sua principal motivação, sem querer escamotear que foram também apontados pretextos de classe e de defesa dos seus interesses «corporativos», colocados em causa por Decreto-Lei que pretendia empurrar os milicianos para o oficialato e a continuação do esforço de Guerra.
A conclusão inevitável é a de que o próprio povo português deve a sua libertação a Amílcar Cabral e à guerra de guerrilha que travou com sucesso na Guiné-Bissau contra o tardio e anacrónico regime colonial português. Mas Cabral não viveria o suficiente para ver a independência do seu país. A 20 de Janeiro de 1973 seria assassinado em Conacri, quando voltava para casa. Embora a PIDE tenha sido acusada pelos guineenses, esta, se é que tenha tido realmente algum vago conhecimento do assunto, como defendem alguns, não foi, de forma alguma, a mandatária. Uma série de programas sobre o assassinato de Cabral, passou há bem pouco tempo na Televisão portuguesa, com entrevistas a muitos dos actores realizadas ao longo do tempo (alguns, como Nino ou Tagma, morreram entretanto): fica-se com a clara impressão de que Sekou Touré é a peça chave nesse puzzle; em franca perda de prestígio, a sua estrela parecia abafada pelo sucesso de Amílcar, que se preparava para «tomar posse»...
A transcrição da apresentação das biografias aqui no blogue está um pouco atrasada, porque tenho tido imenso trabalho; o «boss», no Xantarim, diz que não faz mal, que o evento é lá, e que, portanto, quem «está, está; quem não está, estivesse...». Continuarei a colocá-las, mas a um ritmo lento, até porque tenho de preparar, para cada quinta-feira, o homenageado da semana. Esta semana foi o José Estaline, e já na próxima Quinta, dia 14 de Março, será a vez de António de Oliveira Salazar. O cartaz completo do mês de Março é:
7 de Março - José Estaline
14 de Março - António Oliveira Salazar
21 de Março - Emiliano Zapata
28 de Março - Corto Maltese